dezembro 26, 2007

para dizer o mesmo

sobre o Natal muito já foi dito e muito se diz. Sobre o amor, perdera-se a idéia do quanto já se mencionou. Desde inscrições rupestres, passando pelos hieróglifos perfeitos nos papiros dos escribas egípcios; partindo de línguas mortas até às vivas línguas atuais, o amor sempre foi tema explorado, especulado, esmiuçado. Não seria então mais um breve relato sobre ele, o amor, que o tornaria desinteressante, repetitivo, descolorido.

Eis que me respaldo. Compreendo, porém, que justificar nova alusão ao sentimento que guardo em mim, não me assegura da evasão daquele olhar, que é endereço certo do amor que agora explicito.

A noite desceu como uma lâmina sobre os meus cabelos. Surgiu sem poesia, em detrimento à lua que se afigurava no lado direito do meu campo de visão. Cheia plenamente, mas quase se esvaindo em míngua. Flutuante e clara. Servindo de candeeiro à escuridão fria da serra. Meus olhos, absortos, viam imagens passadas, num momento em que tu eras pura presença e leveza nos dias. Mas onde tu estás, além daqui, nessa memória, que de tão permanente, projeta-se na retina e a faz mais real que a lua e as estrelas lá fora?

Fecho os olhos e a imagem permanece, quase concreta, quase palpável. Temo estender a mão e desfazê-la em poeira. Imagino teu sorriso em minha direção e parece que um sol acabou de surgir na manhã. Não falarei de cores, não falarei de pétalas, muito menos da rosa inteira. Quero apenas fitar teu sorriso, que sempre me deslumbrou. Quero pensar que ainda sorri pra mim, que ainda busca o meu norte. E me escapa um suspiro dos lábios. Imagino nossos dias, imagino que tudo é possível e quase sinto o teu cheiro.

dezembro 19, 2007

meio dia, no meio da noite

o novo dia por aqui acabou de chegar: 0h00.

Eu não encontro a posição certa para os móveis, eu não encontro o disco certo para os ouvidos, eu não encontro a comida certa para a mesa. Mas está tudo posto. Tudo dado. Sigo a vida sem grandes deslumbres, mas me deslumbrando a cada novo evento da alma.

Hoje a dor não me reparte em pequenas parcelas de mim. Hoje sou um todo. A dor saiu a passeio e avisou que não a esperasse tão cedo. Temo pelo vento frio nela que sofre de reumatismos e tem fôlego curto. Temo pela violência urbana que não escolhe a quem atacar, mesmo a uma senhora indefesa e raquítica e desnutrida. Temo pelos desapercebidos que possam acolhê-la em seus lares e que não saibam mais como gentilmente fazê-la sair. Temo que ela esqueça meu endereço (apresenta os primeiros sinais de Alzheimer).

Hoje não me reparto. Não me desfaço. Hoje não será preciso ajustar cada parte de mim ao amanhecer. Hoje não preciso de telefones, nem de cartas, ou cavalos alados. Hoje me refaço, retenho-me, regozijo-me.

A noite lá fora, o dia aqui dentro. O medo lá fora, a luz aqui dentro e o teu nome, que não me assusta, nem resgata a dor da noite lá fora.

dezembro 14, 2007

na tarde que cai

nessas horas de saudade, todo pensamento é inútil. Não há nenhum movimento neuronal que guie a memória por um caminho suave. Tudo é dor. Tudo se faz em branco e preto e amarelo. E aqui o amarelo é pura condescendência do sol a espreitar-me pela fresta da janela. Forma-se um vazio turbulento, quase tempestade. Os minutos representam grandes vãos. Vãos de portas que se abrem para o nada, mas revelam expectativas, que expressam a inutilidade do pensar. Vazio ócio, vazio dócil dado pelo preenchimento quase sufocante da presença ausente. O mantra desse aprendizado é saudade, saudade, saudade, saudade... seguido num tom maior pelo teu nome, teu nome, teu nome, teu nome... E lá se vai a tarde seguindo o pulsar dos segundos. E lá se vai faceira a tarde. Enquanto a saudade e o teu nome dispersam os ambientes e arrastam o tempo. Os ponteiros chicoteados obrigam-se a parar, parar, parar... saudade, saudade, saudade... teu nome, teu nome, teu nome... que flui tão suave em minha boca.

dezembro 08, 2007

roteiro

fim de tarde. Dia comum. Lugar estranho. Céu azul. Nuvens brancas. Silêncio urbano. Pássaros em festa. Vento cantante. Flores em balanço. Flores de frutos: acerola, caju, manga, goiaba... Janela. Varanda. Pôr-de-sol. Calor. Condicionador de ar. Banho frio. Pele fresca. Perfume suave. Cama macia. Luz branda. Livro aberto. Olhos inertes. Senão fosse pelo céu, trovoada. Horas lentas. Hora sem hora. Hora do dia. Carros ao longe. Tempo desapressado. Poeira rodopiante. Céu completo. Paredes partidas. Cinza verão. Burrico estradeiro. Carroça de boi. Cachorro. Galinha. Arca de Noé sertaneja.

Olhos abertos. Caneta em punho. Tinta escorregadia. Pensamento confuso. Respiração ofegante. Olhos fechados. Imagem óbvia. Corpo vulnerável. Corpo preso à condição celibatária. Nenhum desejo. Nenhum sobejo de desejo. Olhos abertos: cegueira completa. Olhos fechados: luz.

novembro 16, 2007

seis letras

hoje amanheceu com neve na janela, frio úmido e aconchegado. É impossível desconforto a qualquer temperatura, se teu abraço foi o esconderijo noturno. Por isso a neve, mesmo com 40 graus lá fora. O dia surgiu traduzindo todas as cores, revelando-se luz. E eu não quis dizer nenhuma palavra, pois nenhuma expressão, em qualquer língua, alcançaria a ternura e eternidade daquele sentimento percebido na tua pele, que transpirava amor. E o teu sorriso me arrebatou. Bom dia!

Saí sem pressa de casa. Deixei o carro na garagem e andei pela rua oposta. Vi borboletas no trânsito, enfeitando os sinais. Vi teu rosto em cada esquina. Cada sopro do vento me preenchia com teu perfume. Vaguei flutuante, repetia poesias, cantarolava músicas que há muito estavam encaixotadas num porão da memória, esperando alguém que as fizessem despertar. Você as trouxe a minha boca, você deu o tom e a voz, admitiu rimas, norteou compassos.

A meus dentes não foi permitdo o anonimato. Todos os viram. Todos compreenderam como se desenha um sorriso bobo, desses que não se apaga, desses que não se copia, apenas se identifica, se reconhece e se deseja igual. Rabisquei um poema, pretensão de contar o amor, de ofertar o amor em versos. Mas hoje a única forma que teria de fazer um poema, seria descrevendo você, poesia concreta.

novembro 07, 2007

incidental

e a prova de que não era uma paixão tola é que meu coração formava meu espírito.

jean-jacques rousseau

mar aberto

eis o dia!

Quis tua voz... e eu a tive! O que queria falar se tornou irrelevante.

“será que você vai saber o quanto penso em você com o meu coração... fui escolhido pela menina mais bonita”

Não importa se sou prolixa, se me equivoco, é você o beijo em minha alma... começa em meu pescoço e, nesse exato momento, eu perco as palavras, mas que não faz a menor diferença, pois sei que tudo que balbucio você compreende. Mas eu não sei dizer tudo que quero dizer, eu não sei como expressar tudo que eu sinto quando você me olha, quando você me toca. Eu rabisco um verbo. Mesmo sem te ver, penso em você e tudo fica azul e amarelo. E eu não consigo disfarçar. Todos encontram poesia em mim e me perguntam como é possível ser feliz às 7h, em plena segunda-feira. Não há resposta, há você e o mundo parece outro, sendo o mesmo. O dia fica claro e leve, não importa o que diga a meteorologia. Tangencio sentinelas. Por que precisão? Preciso de nada, tendo teus olhos. Até a dor sorri nessa alegria de mar.

Tudo vai durar. Tudo certo. Eu sei. Não importa a distância. Nesse exato momento, real ou circunstancial, não importa nem mesmo o silêncio. Mas não precisa calar, fala-me de você. Ouça nossa música. Quem poderá ter essa trilha sonora além de nós? Ouça o mar e se não há, sinta a brisa!! Olha a lua. É tão tua. Sorri. Sorri pra mim. Somos você e eu!

novembro 02, 2007

fora de ordem

atividades dispersas num dia celebrado aos mortos. Fogo morto, tempo morto. Há alguma coisa aqui que destoa do ambiente... tum tum... Ah! Um coração. Se o que define a transposição entre o lado de cá e o lado deles, hoje lembrados, é o pulsar sem fim desse músculo, deduzo que existe vida. Meu coração é teu ou meu coração ateu? E me vejo voltando ao discurso da saudade. Sinto saudade de ontem, pra amanhã sentir saudade de hoje. Saudade do que fiz e do que não fiz. Saudade pura. Tem uma pontinha de masoquismo em nós que nos projeta a esse ambiente de memórias. O pensamento perambula buscando resquícios dos dias idos, dos dias em que tudo que eu sabia de você era construído em bytes. Todas as cores do nosso amor podiam ser escolhidas e editadas: ‘ah, mas esse amarelo é muito aberto...; não sei se digo que te amo em times ou em verdana, em negrito ou em itálico...’ E teu rosto era bidimensional. Teu sorriso estático, apesar da sua melodia inconfundível, que os recursos de áudio da Embratel me permitiam ouvir. Lembro ainda da letra harmoniosa, num papel branco, quando nos permitimos pintar o jogo da fala da tinta. E como esquecer a primeira vez que ouvi de tua boca, lançado como uma flecha em minha direção, o termo usual dos amantes? Fiz esse mesmo sorriso amarelo que repito agora, como em todas as vezes que ouço de ti a mesma fala. E me vejo tecendo essa história e recriando espaços, refazendo a casa, depurando os dias. Há alguma coisa no amor que escapa de qualquer compreensão plausível. Eu perco o sono e o chão. Eu ouço o telefone tocar a cada dois minutos. Eu ouço tua voz no corredor e ‘eu não sei onde estás, nem com quem’.

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eu levo o seu coração comigo (eu o levo no
meu coração) eu nunca estou sem ele (a qualquer lugar
que eu vá, meu bem, e o que que quer que seja feito
por mim somente é o que você faria, minha querida)


tenho medo


que a minha sina (pois você é a minha sina, minha doçura) eu não quero
nenhum mundo (pois bonita você é meu mundo, minha verdade)
e é você que é o que quer que seja o que a lua signifique
e você é qualquer coisa que um sol vai sempre cantar

aqui está o mais profundo segredo que ninguém sabe
(aqui é a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore chamada vida, que cresce
mais alto do que a alma possa esperar ou a mente possa esconder)
e isso é a maravilha que está mantendo as estrelas distantes


eu levo o seu coração, eu o levo no meu coração


e.e. cummings

novembro 01, 2007

monólogo

eu amo você

outubro 31, 2007

sobre plumas e monstros

suposto ter sido o dia leve. Hoje é uma data sem data. Sim, mas o dia foi produtivo. Até o momento em que entrei em casa e vi teus olhos apontando para os meus. De soslaio, mas apontando para os meus. O que eu sei? Eu não sei. O que sei já ultrapassa o limite da repetição suportável. O vinho que matenho cuidadosamente na horizontal, no lugar mais fresco da cozinha, já atravessa meu campo de visão. E não acho que as pessoas são piores ou melhores porque usam algum tipo de droga lícita ou ilícita nos seus dias. Sei que há coisas fugidias que se intercalam no caminho e são muito mais nocivas que qualquer elemento alucinógeno que possa ser ingerido. Mas faço parte dos novos burgueses pudicos, comedidos e de discurso aprumado que fomentam o uso apenas do aceitável pelos olhos do vizinho. No meu caso, é aceito desfrutar do destino mais nobre da uva cabernet sauvignon. Mas voltando ao eixo, o dia foi produtivo e leve, posso descrevê-lo com os mesmos termos e taxá-lo de levemente produtivo. Foi intenso: calor intenso, trânsito intenso, barulho intenso, amor tenso, saudade... aqui paro, condenso. Eu sei que a música que ouvia ontem pela manhã continua repetindo baixinho num canto da sala e as folhas dispersas que jurei guardá-las hoje, foram incrementadas por outros escritos de igual importância. Mas já fiz novas promessas. Amanhã voltarei à corrida. Cinco da manhã: tênis, meias, roupa leve, seis quilômetros pela frente. Disseram que eu posso desaparecer, mas argumentei que o natal e o reveillon nos trazem bons acréscimos calóricos, é preciso subtrair mais que o necessário, para garantir a adição sem culpa... que papinho mais sem propósito! Resumindo: a primeira refeição, uma água de coco; a segunda, um coca zero; a terceira, uma barra de cereal; a quarta, um vinho. Mas teus olhos apontando para os meus foi uma coisa que me assustou. Esqueci ao longo do dia que tinha te deixado neste canto, para atravessar-me. Teus olhos apontando para os meus, aqui e por trás da câmera. Teu sorriso provocando meus sentidos, aqui e por trás da câmera. Mas sim, meu dia foi quase leve. Produzi o que disse que faria, mas não disse muito. Por isso começarei o próximo dia com seis quilômetros a serem escritos.

Era suposto ser leve esse texto. Era suposto ser producente. Mas na verdade, quero apenas que o mês termine. Faltam 28 minutos!

outubro 28, 2007

silêncio

a qualidade do que é frágil não se discute, pode quebrar. Deve ser cultuada em silêncio. Num silêncio de noite. A noite guarda a delicadeza das coisas. Na sua beleza negra de mãe que acolhe, guarda o sentimento de tudo.
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divagações em uma fria noite - julho de 1999


outubro 25, 2007

fome de amor

a maioria dos lugares por onde passamos e que neles há escritos, estes, infinitas vezes, fazem considerações sobre o amor ou ao ato de amar, ou à coisa amada: a personificação do sentimento. Quase todos prolixos, às vezes com relampejos de erudição. Mas o amor é prolixo e pontual; erudito, mas simples também. Paradoxo em si.

A luta diária é para prover o sustento do corpo e da alma. Salários pagam o pão nas suas mais variadas formas. Mas e o amor, como saciar nossa fome de amor, a sede por sermos amados? Salários não pagam o amor. Eis um item impagável, senhores. Guardem seus milhões! Amor é serenidade, simplicidade, altruísmo, devoção.

“Eu te amo!” Trezentos milissegundos depois de proferir esta fala, podemos ser arrebatados pela mais perfeita audição, o pão mais sublime para a alma: “eu também te amo”. Mas o amor não exige troca, nem poderia. E passamos os dias tentando controlar ou satisfazer o apetite: olho na balança, olho no relógio, tempo apressado. Passamos os dias tentando controlar a ansiedade para amar ou para sentirmo-nos amados: medo da rejeição, medo da solidão.

E matamos a fome. Matamos também o amor. Queremos trocas e certezas. Achamos que vamos morrer de inanição: o amor está escasso. O amor se torna insuficiente. Privação de amor. Será mesmo? Será que não nos boicotamos vez ou outra? Por que tantas vezes nos permitimos à reclusão e não buscamos alimentar ao amor, ao invés de colocarmo-nos na posição passiva de sermos supridos por ele? E tem sido essa a minha mais importante tarefa dos dias, alimentar a esse amor. Tratá-lo com atenção. Lisonjeá-lo sem pieguice, embora compreenda a tênue linha entre esta e o amor.

Não tenho fome do teu amor, ele me sacia. Tenho fome do teu sorriso, da tua boca, que sorri e beija. Tenho fome dos teus braços que enlaçam meu corpo. Tenho fome da tua voz dizendo eu te amo. Mas espero. Olho a lua boiando lá fora e exercito o altruísmo. Apenas deixo que saibas que, de minha parte, ela é tua. Não precisas dar-me nenhuma estrela por isso. Pega essa estrela e enfeita o nosso amor. Mima-o, pra que ele seja sempre o que é hoje: um amor puro e livre.

Mas ninguém nunca imagina que um amor assim possa acontecer, mas acontece e para nós aconteceu. Agora quero ficar com ele pra sempre. Quero amá-lo do jeito que amo agora pra vida inteira. Se formos embora, perdemos tudo... não nos perca, não se desfaça de nós. Parece que o amor não segue expectativas, que é mistério puro e absoluto. Ainda assim, vamos regá-lo! Vamos rodeá-lo de cuidado e atenção e todos dirão que temos muita sorte.

outubro 21, 2007

escuta

preso a um corpo e a uma profissão, meu espírito vagueia entre o teu amor e a felicidade que ele me causa.



outubro 08, 2007

sobre o desejo

adentrar-te!
roubar-te a íris
e o teu branco - mácula lútea.
perceber tua alma inquieta
e fazer-te senti-la percebida.
e aprender-te em braile.

setembro 25, 2007

ao meu amor, que dorme

nesta noite de poucas estrelas
me apaixonei
por teus olhos
e agora já não sei
como perdê-los de vista

(...)

a noite - enorme
tudo dorme
menos teu nome

paulo leminsk

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Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.

pablo neruda

lilitchka!

em lugar de uma carta

Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto –
Um capítulo do inferno de Krutchônick.
Recorda –
Atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração – aço.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez, com zanga.
No teu hall escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado, tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor, meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
– duro fardo por certo –
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.
deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
Ele trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum um som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
e não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com o seu brilho.
Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos
– rodopiante carnaval –
dispersarão as folhas dos teus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?

Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

Maiakovski

setembro 24, 2007

calmaria


Tens no meu sorriso tua agonia
Tens a festa, tens a dança, tens a cantoria
Tens no meu amor tua teimosia
Tens no meu silencio tua garantia
Tens na rua a graça, o beijo
Tens a fantasia
Tens na mão a faca e o queijo
Tens a noite e o dia
Tens na minha ausência tua companhia
Tens a fama, tens a lama, tens a ironia
Tens na minha dor tua melodia
Tens na minha sombra tua moradia
Tens no quarto um cão vigia, tens a valentia
Mas só na minha morte então terás tua calmaria


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tens (calmaria), ronaldo monteiro e ivan lins

abril 06, 2007

eu preciso dizer que te amo

trata-se de uma doação. Há muito menos aqui do que desejado, mas não sei se tanto mais a ser dito. Repito-me. Perco-me. Falo de amor e saudade e saudade e amor, com uma leve pitada de dor, como é próprio dos românticos. Trata-se de um guia, ou um mapa de retorno... retorno ao que alimenta de leveza e consistência, de claro e sombra, de amor e dor (há algum antônimo pra amor? Temo que não. O amor faz-se contrário a si mesmo... princípio e fim, ‘avesso do avesso’).

Trata-se de um sussurro. Um gesto incontido. Um beijo no escuro... se esqueço a forma adequada de expressar um fato qualquer, é por que não existe manual. Não há bula. Não existe um resumo sequer. Esforço-me em falar sem peso sobre essa aflição desajeitada, equivocada tantas vezes, que atende por vários nomes. No meu caso, prefiro atribuir-lhe a alcunha mais óbvia: amor. Mas qual o melhor epíteto para tão notável beleza? Teu nome!

Trata-se de um bilhete escrito às pressas. Desejaria ser daqueles que se interpõem entre lados opostos de um mesmo lado e desfazem viagens e param trens e pacificam corações.

Trata-se de um projeto (um esboço talvez seja o termo adequado), cuja proposta é dizer eu te amo.

abril 03, 2007

nalgum lugar

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo igual
ao poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fechae abre;
só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

e. e. cummings

abril 02, 2007

de perto ninguém é normal

o delírio é uma tentativa de cura, de reconstrução. O sistema delirante é, na verdade, um sistema de sobrevivência.

freud

março 30, 2007

assincronia

e os dias persistem vazios e inacabados, envolvidos por uma crônica solidão, às vezes assintomática, frívola, inaparente. Tua imagem é quase um símbolo de resignação. É próprio dos amantes sofrer por antecipação ou remoer pequenas dores. Sentem prazer nisso. Ao mesmo tempo em que buscam um desfecho razoável, com frases óbvias ‘me perdoa, eu te amo’. Já não sei do que sinto ciúme, mas lembro o estímulo inicial. Hoje qualquer sugestão desencadeia essa reação em cascata: corda, penicilina e flor... li isso em alguma canção, que esqueci a autoria, mas é a medida certa desse medo que espreita minha casa e atende por teu nome.

Ando vivendo essa série de ‘escondam-as-cordas-os-estiletes-a-água-sanitária’, nesse mundinho chinfrim que a gente cria pra dizer que sofre e pra nutrir a dor. Ando ouvindo Dolores Duran... ‘olha, você vai embora, não me quer agora’; Nana Caymmi... ‘sabe, eu não faço fé nessa minha loucura’; Byllie Holiday... ‘if you’re mine’ e indo além... choros e sambas que fizeram a noite paulistana de décadas atrás; tangos e boleros; Ataulfo Alves... ‘atire a primeira pedra’; Ângela Rô Rô... ‘sonho acordado, sou sua’; Gonzaguinha... ‘coração aberto, tô sangrando’; Renata Arruda brincando com Bráulio Tavares... ‘sabe o que você é para esse cara aqui, é um pára-quedas da FAB, daqueles que nunca abre na horinha de abrir’... Mas vamos deixar essa discografia de lado. Subitamente, acho desnecessária essa profanação. A dor, tal qual o amor, não se descreve, sente-se, parafraseando Sêneca.

Mas continuo apostando no amor. Continuo querendo viver um dia de cada vez, um sorriso de cada vez, um beijo de cada vez, um olhar de cada vez e, claro, o inevitável, um pouco, mas só um pouquinho de dor de cada vez.

E lá se vai mais um fim de tarde. Dia soturno afunda no horizonte. Sombras do sol ainda clareiam vagamente a folha de papel, sobre a qual me debruço, sobre a qual me entrego e regozijo esse prazer ínfimo de dizer-te, mesmo sem que saibas, que minha dor é tua, por que é teu amor quem me traz.

março 29, 2007

o que me assusta

Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero. E porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo que me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado.

clarice lispector in a hora da estrela

março 28, 2007

à beira do mar aberto

...dentro de mim guardo sempre teu rosto e sei que por escolha ou fatalidade, não importa, estamos tão enredados que seria impossível recuar para não ir até o fim e o fundo disso que nunca vivi antes e talvez tenha inventado apenas para me distrair nesses dias onde aparentemente nada acontece e tenha inventado quem sabe em ti um brinquedo semelhante ao meu para que não passem tão desertas as manhãs e as tardes buscando motivos para os sustos e as insônias e as inúteis esperas ardentes e loucas invenções noturnas, e lentamente falas, e lentamente calo, e lentamente aceito, e lentamente quebro, e lentamente falho, e lentamente caio cada vez mais fundo e já não consigo voltar à tona porque a mão que me estendes ao invés de me emergir me afunda mais e mais enquanto dizes e contas e repetes essas histórias longas, essas histórias tristes, essas histórias loucas como esta que acabaria aqui, agora, assim, se outra vez não viesses e me cegasses e me afogasses nesse mar aberto que nós sabemos que não acaba nem assim nem agora nem aqui.

caio fernando abreu

março 26, 2007

do outro lado

Fico pensando no tempo que permitimos transcorrer absolutamente preenchido por nada. Pensamentos ociosos, delinqüentes, desperdiçados. Do outro lado de tudo, você. Imagem sólida, sem datas, sem pretextos. É certo que te impregno de mim. Isso pode ser bom. Deve ser bom, né? Mas a inquietude desapercebida, por vezes até dócil, pode emanar notas repulsivas, entoando o gracejo do afastamento.

E vivemos nesses momentos solidão aos pares. Consentida. Não alcanço teus gestos, nem tua fala. Nem sempre. Imagino poder te fazer entender que o silêncio é uma forma de contrição, de adoração, de respeito. Raramente denota evasão.

E eu te vi agora passar por essa janela. Mas foi uma passagem tão rápida, que não me permitiu o aceno.

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As coisas estão longe de ser todas tangíveis e dizíveis
quanto se nos pretenderia fazer crer;
a maior parte dos acontecimentos é inexprimível
e ocorre num espaço em que nenhuma
palavra nunca pisou.

cartas a um jovem poeta, rainer maria rilke

março 14, 2007

a difícil arte do entendimento

Algum dia, desejo ter o que penso, transformado efetivamente em palavras inteligíveis. Elas me escapam. Tenho a impressão, por vezes, que alguma força desalinha minha fala, no exato momento em que a liberto. Por que quando vejo cá, pelo lado de dentro, está tudo claro e definido. É a fala certa, no momento exato, da maneira mais natural e precisa que se possa desejar.

Houve um momento em que acreditava que minha retórica não era tão má, mas agora percebo que não há conexão favorável ao entendimento, nas palavras que busco mencionar. Asseguro que me esforço e o esforço não é pra dizer o que o outro quer ouvir (seria um esforço inútil e ridículo). Sou prolixa, no exato significado do termo. Você não entende... nem eu.

março 12, 2007

a medida exata

Cecília Meireles, entre tantos poetas que me inquietam o espírito, sempre me acompanhou. Mas hoje ela passou o dia no meu pensamento. Precisei revisitá-la, pois não conseguia parar de repetir esse trecho de guitarra: a maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata.

Hoje foi um dia atípico. Vivi essa tristeza de saber quem me mata. Engraçado isso de nos permitirmos morrer de amor, quando de fato não morremos nada. Mas essa dor extenuante de punhal atravessando o peito, dor física mesmo, é como morrer. Meu punhal tem a medida exata, com uma letra e várias datas. Lembro de todas. Datas às vezes não são celebradas. Podem passar desapercebidas. Mas sempre gostei de lembrar e falar e festejar até a exaustão todas as que se tornaram importantes. E hoje é dia 11, quase 12. Essa é uma data que vem sendo celebrada há pouco. É essa exata transição – de 11 a 12 – que me desassossega. Em breve será um ano a ser registrado no punhal. Como esquecer? Não é vontade também esquecer. Desejo, ainda que remeta a alguma dor, manter acesa essa lembrança de datas que impuseram um risco na história: antes e depois de.

Tenho péssima memória fotográfica. Tudo bem, o teu rosto que preciso, foi registrado de todas e tantas formas que é nem Sir Alzheimer me fará esquecê-lo. E minhas memórias de todas as datas são protagonizadas com esse rosto indelével. Então tenho um diário permanente, como o diário de uma paixão. Posso contar cada evento e vou registrando-os nesse punhal. Acho que é ele que me mantém desperta.

Punhal de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
- No cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

guitarra, cecília meireles

Então é isso, punhal de prata, se não tivesses desenhado essa letra, nem essa data, não teria a dor de saber quem me mata.

março 11, 2007

libertinagem


libertina, priscila hlodan

tanto querer



quando a gente se encontra, cresce no peito
um gosto de vida, um sorriso, tanto querer
é quando a luz da saudade acende de um jeito
se faz tanto tempo, a gente não quer nem saber
agora será como sempre, eterno, presente
certeza que mesmo distante, em nós resistiu
seja luar, amanhecer
saudade vem e vai
amor é o que me levará a você

tanto querer, geraldo azevedo e nando cordel

posse é peso

O que significa ser do outro? Dizemos a todo o tempo ‘sou teu’, ‘sou tua’. Pobre de nós. Ninguém quer ser pertencido e mais que isso ninguém quer ser dono. Dá trabalho administrar a posse. Queremos mesmo liberdade. Mas, paradoxalmente, a liberdade nos permite dizer ‘sou teu’, ‘sou tua’. Ainda assim é possível que o outro, detentor dos códigos de acesso, não queira a doação. Acredito que tenha relação com o medo de sentir visto de perto, de ser descoberto.

O amor é piegas, repetitivo, insistente mesmo. Alguns amam dando ainda mais ênfase a essas características (tantas vezes me vejo fazendo parte desse seleto grupo de pieguice, insistência, repetição). Por segundos, os donos desse comportamento se chamam à razão. Inútil! Vêem-se loucos fora desse doar-se sem fim.

‘A lua é sua. Vênus é sua. O vento que te acaricia sou eu. Meus pensamentos são seus...’ Ofertar essas coisas evidenciam o nosso deslumbramento e perda de realidade. Será que antibiótico cura? Alguém conhece algum chá qualquer que alivie o sintoma? Já seria suficiente o alívio sintomático dessa coisa de ir e se dar. Daria chance para o outro se recompor, desintoxicar-se de nós insistentes. Talvez plantássemos até um pouco de saudade em seus corações. Mas não sei se queria tomar desse chá. Vai que ele traz algum efeito colateral, como auto-suficiência, independência, desapego? Como seria amar sem dizer ‘eu te amo’ cem vezes por fala? Não! Tudo bem. A lua continua sendo sua. Quando houver nuvens brancas desenhadas serão suas, até o dia que eu decida não mais ofertá-las.

Confuso mesmo. Entendo o não querer ser possuidor da coisa amada ou da coisa que diz 'eu amo'. Afinal, ninguém nunca guardou a lua, uma noite que seja, no teto do seu quarto... ‘pronto, hoje a lua que você me deu está comigo.’ Esquisito isso. E o vento? Coisa mais sem propósito amar assim. ‘Meu coração é teu...’ e se ele parar, alguém o colocaria no formol e o manteria ali ao lado? ‘Ah, meu doce coração... saudades do resto que te acompanhava.’

Mas amamos assim. Buscamos nessas coisas escorregadias e inalcançáveis provar que é algo grande o que sentimos. Tentamos provar com o imaginário algo que garantimos ser real, palpável. Talvez seja o amor o próprio imaginário e, assim sendo, vai ter o valor que cada amante o oferecer. Há alguns, como eu, que sofremos com o peso que damos ao nosso amor e, por vezes, não conseguimos sequer erguê-lo. Então o amor – piegas, repetitivo e insistente – torna-se também opressivo, fazendo com que o outro o descarte. Ninguém quer fardos. Por isso ninguém quer posse. Posse é peso.

março 09, 2007

entre duas coisas

You say you wander your own land
But when I think about it
I don't see how you can

You're aching, you're breaking
And I can see the pain in your eyes
Says everybody's changing
And I don't know why.

So little time
Try to understand that I'm
Trying to make a move just to stay in the game
I try to stay awake and remember my name
But everybody's changing
And I don't feel the same.

You're gone from here
Soon you will disappear
Fading into beautiful light
'cause everybody's changing
And I don't feel right.

everybody's changing, keane

...

Essa música sempre vai me lembrar um lugar. Nele, você. E entre essas duas coisas, um dos momentos mais lindos da minha vida.

fevereiro 25, 2007

sir lancelot

Ele nasceu em 10/12/2006. Nesse momento, eu nem pensava que algum ser pudesse estar nascendo, entrando nesse universo de cores e luz e sons ao qual pertencemos. Embora goste de animais e quisesse um cãozinho comigo, esse desejo ainda era só desejo e distante. No dia 07/02/2007, eu o conheci e então percebi que não sairia daquele lugar sem trazê-lo comigo e acho que ele também pensou assim. Pertencíamos! (E você sabe de sua participação nesse processo)

Quando chegou em casa, era tímido e medroso. Aonde quer que eu fosse, ele estava ao lado, querendo que eu o olhasse. Acho que ele queria a certeza de que esse seria o seu lugar e não mais um ambiente de passagem, como havia sido o último em que esteve. Ele tinha comida, sombra e água fresca, mas não se sentia seguro. Nada que dois ou três dias de parceria não resolvessem. Ele começou a pular e correr por todo espaço, sabia-se dono.

Não consigo explicar como uma coisa tão pequena e peluda (hoje, com quase três meses, ele pesa 1,2Kg) pode fazer tanta diferença no dia a dia; é capaz de nutrir tanto amor e carinho; pode se tornar imprescindível na minha vida.

Bem-vindo Sir Lancelot GH Crepúsculo Vermelho, a casa é sua e o meu coração também.

fevereiro 23, 2007

menina da lua

Leve na lembrança
A singela melodia que eu fiz
Pra ti, ó bem amada
Princesa, olhos d'água
Menina da lua
Quero te ver clara
Clareando a noite intensa deste amor
O céu é teu sorriso
No branco do teu rosto
A irradiar ternura
Quero que desprendas
De qualquer temor que sintas
Tens o teu escudo
O teu tear
Tens na mão, querida
A semente
De uma flor que inspira um beijo ardente
Um convite para amar

de renato mota por maria rita

fevereiro 22, 2007

segundo dia

Busco um espaço na casa que consiga suportar minha inquietude. O quarto, cheirando a deserto, por demais inóspito, expulsa-me pelo corredor. Paro frente à janela. Aquela da qual enxergo melhor o rio, que rasga lentamente a cidade. Encontro no canto da sala um tímido lugar que se mostra acolhedor. Aproximo-me com cuidado. Descalço. Busco sentar-me sem ruídos. Tento não acordar a poeira. Ao lado, alguns livros em desalinho. Relembram que o estado atual de inquietude não é recente. Meio sem olhar, escolho qualquer um. Afinal, qualquer um deles me dirá muito pouco, de ante-mão sei que não terei concentração suficiente para percorrê-lo com a atenção que merece. Consigo dez minutos nesse lugar, quando, num impulso, sou levado a buscar um café. Almejo mais quinze minutos, onde a espera pela fervura da água poderá me dispersar, seguido daquele cheiro único, de frescor da manhã ou de final de dia, que para mim pouco importa. O som da água no fundo da cafeteira traz uma certa calmaria. Observo como ela se acomoda. Devagar busco o pó (sem açúcar). Sinto o cheiro, que me traga por alguns instantes, mas inadvertidamente, me remete a você, mais uma vez. Outra vez. Como cada coisa tem feito nos últimos dias. A caneca que procuro para abrigar esse negro amor, já fora desapercebida... Teu rosto, tuas mãos, teu cheiro (que desconheço) é que impregnam a tudo. Quase consegui quinze minutos de abstração.

num dia perdido num janeiro de 2006

fevereiro 21, 2007

outono (reeditado)

São quatro horas da manhã. Vinte e três de abril. Outono teimoso. Calor intenso. Tempo abafado. Chuvas escassas. Quarto trancado. Luzes acesas. Som de ventilador. Relógio de cabeceira. Lanterna pra proteção. Abajur apagado. Livros à mão. Caneta bic. Caderno antigo. Caderno novo: compras recentes. Coração apressado. Batidas num compasso descompassado: tum tum piuí. Opa! Será o trem? Memorial de Buenos Aires. Memórias clandestinas. Coração apertado. Saudade espaçosa. Ocupa toda a casa. Ocupa ao Recife inteiro. Ocupa a uma vida inteira. Coração maltratado. Coração ingênuo. Coração deslumbrado. Deslumbra-me a tudo que me remete a ti. Remeto-me a ti. Aceita-me, meu amor. Aceita meu amor, meu prazer desmedido, minha fala titubeante, meu gesto incontido, minha prosa se querendo verso. São quatro horas e alguns minutos. Madrugada de domingo. Começa a chover. Paredes brancas. Noite preta. Combinação ímpar. Lua minguante. Amor crescente. Estrelas apagando. Vênus acendendo. Cecília Meireles. Florbela Espanca. Maiakovski. Para viver um grande amor: vinho, madrugada, poesia, velas trêmulas, flores e pétalas, café fresco, sorvete de morango, licor de amarula, chuva no telhado, frio e edredom, filme antigo, música por Bethânia, jantar por tuas mãos, café na padaria, amor de madrugada, dormir por todo dia, dormir enlaçado, proteger o sono, beijo no pescoço, mãos nas mãos, comprar livro, ler livro, dedicar livro, rir do riso, acalentar no choro, brigar pra fazer as pazes, sol e mar, água fresca, banho a dois, água morna, sessão coruja, beijo roubado. Para viver um grande amor: você e eu.

Recife,
23 de abril de 2006
Quatro horas e dezoito minutos

fevereiro 18, 2007

tua chegada

a tua chegada
é como luz: brilha
é como fogo: arde
é como frio: queima
é como mar: acalma
é como céu: inunda
é como ninho: acolhe
é como telha: protege
é como mão: acalanta
é como lápis: diz
é como ar: penetra
é como nuvem: refresca
é como mãe: abençoa
é como tempestade: desperta
é como tudo: não sei
é como nada: peixe

janeiro 23, 2007

quando o próprio amor vacila

Eu sei que por trás desse universo de aparências, das diferenças todas, a esperança é preservada. Nas xícaras sujas de ontem, o café de cada manhã é servido. Mas existe uma palavra que eu não suporto ouvir e dela não me conformo. Eu acredito em tudo, mas eu quero você agora. Eu te amo pelas tuas faltas e pelo teu corpo marcado, pelas tuas cicatrizes, pelas tuas loucuras todas, minha vida. Eu amo as tuas mãos, mesmo que por causa delas eu não saiba o que fazer das minhas. Amo o teu jogo triste, as tuas roupas sujas é aqui em casa que eu lavo. Eu amo a tua alegria. Mesmo fora de si, eu te amo pela tua essência, até pelo que você poderia ter sido, se a maré das circunstâncias não tivesse te banhado nas águas do equívoco. Eu te amo nas horas infernais e na vida sem tempo, quando sozinha bordo mais uma toalha de fim de semana. Eu te amo pelas crianças e pelas futuras rugas. Te amo pelas tuas ilusões perdidas e pelos teus sonhos inúteis. Amo o teu sistema de vida e morte. Eu te amo pelo que se repete e que nunca é igual. Eu te amo pelas tuas entradas, saídas e bandeiras. Te amo desde os teus pés até o que te escapa. Eu te amo de alma pra alma e mais que as palavras, ainda que seja através delas que eu me defenda, quando digo que te amo mais que o silêncio dos momentos difíceis, quando o próprio amor vacila.

Autor Desconhecido, por Maria Bethânia no show Maricotinha

janeiro 17, 2007

história medieval

A ociosidade me inquieta!
Olhar fixo num canto, deixo que as palavras últimas ouvidas encontrem um repouso no pensamento. Que em breve não sejam mais que memória antiga.
Incomoda este “ter sempre razão” da criatura humana, mesmo quando parte de quem amamos. Devo acreditar que meu comportamento é similar, em detrimento da eterna vigilância. É um mecanismo quase padrão na relação entre as pessoas. Tanto que quando, em determinado contexto, alguém sugere participação em algum ato, que ouso denominar de culpa (tiremos o peso da igreja católica daqui), é de átimo tachado de coitado, de alguém se fazendo de vítima. Percebe? Se você admitir culpa, você é vítima. Se acusar, é culpado.
Meu amor não é menos intenso por isso. Apenas desejo menor ênfase no auto-elogio. Todos estamos implicados.

janeiro 15, 2007

retrato falante

Não há quem não se espante, quando
mostro o retrato desta sala,
que o dia inteiro está mirando,
e à meia-noite em ponto fala.

Cada um tem sua raridade:
selo, flor, dente de elefante.
Uns têm até felicidade!
Eu tenho o retrato falante.

Minha vida foi sempre cheia
de visitas inesperadas,
a quem eu me conservo alheia,
mas com as horas desperdiçadas.

Chegam, descrevem aventuras,
sonhos, mágoas, absurdas cenas.
Coisas de hoje, antigas, futuras...
(A maioria mente, apenas.)

E eu, fatigada e distraída,
digo sim, digo não - diversas
respostas de gente perdida
no labirinto das conversas.

Ouço, esqueço, livro-me - trato
de recompor o meu deserto.
Mas, à meia-noite, o retrato
tem um discurso pronto e certo.

Vejo então por que estranho mundo
andei, ferida e indiferente,
pois tudo fica no sem-fundo
dos seus olhos de eternamente.

Repete palavras esquivas
sublinha, pergunta, responde,
e apresenta, claras e vivas,
as intenções que o mundo esconde.

Na outra noite me disse:
"A morteleva a gente. Mas os retratos
são de natureza mais forte,
além de serem mais exatos.

Quem tiver tentado destruí-los,
por mais que os reduza a pedaços,
encontra os seus olhos tranqüilos
mesmo rotos, sobre os seus passos.

Depois que estejas morta, um dia,
tu, que és só desprezo e ternura,
saberás que ainda te vigia
meu olhar, nesta sala escura.

Em cada meia-noite em ponto,
direi o que viste e o que ouviste.
Que eu - mais que tu - conheço e aponto
quem e o que te deixou tão triste."

Cecília Meireles