janeiro 25, 2008

depois que você me deixou

ponto de partida: o quarto e o capítulo de qualquer livro. Maiakóvski falou sobre o inferno de Krutchônikh e Khliébnikov no poema mais visceral da minha adolescência. Faz tempo, mas não tanto. Ainda sinto o mesmo nó na garganta, que se aperta mais quando o leio em dias como hoje, depois que você me deixou, depois que você em voz mansa vomitou verdades impossíveis de serem ouvidas, senão quando arremessadas sem aviso.

Estou num momento de quarto. De escrever sem pretensão de que seja razoável, de escrever pra ninguém, de escrever pra jogar fora, de palavras ininteligíveis, de neologismos. Depois que você me deixou, dei pra ouvir menos música, na verdade tenho buscado canções que suponho que você não conheça, pois me parece insuportável ouvir qualquer coisa que me lembre sua voz cantarolando. Depois que você me deixou, ligo bem menos a tv, menos que o pouco que já ligava. Tenho parecido mais arrogante do que se supõe depois que você me deixou, é uma forma que encontrei pra justificar a sua ida, o seu desamor, o seu desapego.

Depois que você me deixou ainda não dormi do meu lado da cama. Durmo em lado nenhum. Deito para o lado oposto ao que ficava o seu rosto, quando lá pelas tantas da madrugada a cidade silencia e eu posso ouvir estrelas e o sono aparece, junto com o gosto de lágrima, que eu deixo na cama, onde antes ficavam seus pés. Depois que você me deixou acordo junto com os pássaros, algumas horas depois de ter deitado, de olhos inchados, de cara inchada, quase sem susto, e embora esteja num momento de quarto, saio o mais depressa que posso da cama, que não me ver mais do meu lado, que existia quando existia o seu.

Depois que você me deixou, o banho frio pela manhã passou a ser mais demorado; o café, mais amargo; o silêncio, mais agudo; o olhar, mais perdido. O corredor se tornou mais longo, toda a casa parece ter mais espaço. A porta pra rua parece mais convidativa, depois que você me deixou, mas a rua é a sua imagem e semelhança. Depois que você me deixou, evito os nossos espaços, aqueles sabidamente nossos, busco outros que acabam trazendo a idéia de ser um lugar bonito e por isso deveria tê-lo apresentado a você. Mas quem disse que você não conheceu depois que você me deixou, ao lado de outra pessoa que você ainda não deixou, nem pensa em deixar?

Mas estou num momento de quarto e de livros e de café e de vinho e de chá e de caneta bic e de música que você não conhece e de tv menos ligada que antes, pois depois que você me deixou os dias são mais longos e as noites intermináveis, diferente da rapidez com que findavam quando você tinha o seu lado da cama, que definia o meu, embora sempre buscássemos ocupar o mesmo lugar, antes do sono chegar, quando a noite silenciava, ouvíamos estrelas e eu dormia com o gosto da sua boca na minha.

janeiro 18, 2008

a idade do gesto

o coração batendo dentro do peito, outro batendo na porta da casa. Silêncio de pássaros, vozes do vento, passos se afastando. E fico pensando quantas vezes precisei justificar por refazer o discurso, por pensar diferente sobre um mesmo fato. Regra geral espera-se que decisões tomadas, ideais estabelecidos, pensamentos elaborados solidifiquem-se, perpetuem-se em bronze. Alegra-me poder pensar diferente sobre a mesma coisa, fico feliz por não emoldurá-la, nem exibi-la como minha verdade absoluta.

Nem sempre é fácil. Algum indicador, muitas vezes o meu, aponta e condena esta flexibilidade, pois é mais fácil ser compreendida como inconstância, instabilidade, incoerência, dualidade perniciosa. Mas, claro, não falo aqui da possibilidade de mudança segundo a conveniência, seria muito prático. Falo da beleza de poder olhar várias vezes a mesma coisa e vê-la como não sendo mais a mesma, como, em verdade, não é, assim como o observador se tornou outro.

Minha alma é nova, meus medos dormem. Em um dia chegamos, no outro já não nos sabemos onde. Poderia dizer que no outro dia partimos. Mas paro, pois o que define os dois lados da viagem? Essencial é que mesmo que nem sempre o céu esteja descoberto e nem sempre esteja clara toda a beleza do caminho, que se olhe com cuidado, pois está tudo lá, tudo ao alcance. Além disso, se há neblina, ela pode ser encantadora.

Mas mesmo que eu tenha culpado a neblina e ignorado todos os sinais, transgredido todos os letreiros luminosos de Atenção! Pare! Semáforo adiante! que tenha fugido (pois é sempre a direção mais óbvia) e definido a paisagem como a mesma, como imutável, déjà vu, eu não posso dizer que amei errado... Amar errado? Seria amar pouco? E qual a definição para amar certo? Sei que não amei pouco, mas o que seria amar muito? Eu sei, você sabe (eis que se modifica), é quando transborda e repetimos, repetimos, repetimos “eu te amo muito”. Sei também que dói. Mas de dor e amor vivemos e aprendemos com isso. Mas o amor, como a dor, como tudo, transmuta e termina, tendo a idade do gesto ou do céu.

janeiro 17, 2008

a cidade do outro

o céu quis desabar. Nuvens pesadas aliviaram o calor dos últimos dias, soltando do alto gotas claras e frescas. Nenhum pensamento estranho me ocorreu. Penso o mesmo que antes, no entanto tenho usado mais o perfil de espectadora, de estrangeira em meu próprio território. Olho pra trás como quem assiste a um filme: comovida, mas sentada confortavelmente em uma poltrona. E nesse cenário, posso achar que a lágrima é fruto da cena de dor do ator, que finge senti-la.

E o dia amanheceu com cheiro de orvalho, de terra molhada, mas a sensação de cada momento é mediada pela saudade de um olhar de cor inexplicável, brilho inconfundível e sorriso aberto. Circunstancialmente, tenho usado palavras longas para ocupar espaços de pensamentos extensos e inacabados. Considero como pagar preços. O nosso modo capitalista de ser, nos impele a atribuir valores às coisas. Mercantilistas, pagamos o preço, o pato. Pagamos pra ver. Trata-se de uma forma de justificar algum dano que nos causamos, quando, supostamente, não seria necessário sofrê-lo. Entre o sim e não me perdi talvez. Entre o ir e o ficar me pus. E fiz desembarques não tão felizes. E aqui me vejo, nesse porto, quase alegre, mas sem ancorar, estou de passagem.

janeiro 05, 2008

métricas e especulações

postulado. Não era mais preciso. Mas aquele passeio me rendeu reencontro. Não sei ao certo porque parei, olhei para trás e estendi a mão. Agora feito o gesto não há como recolhê-lo. Soou como postscriptum, então agora ponto.

Lusofonias à parte, reconheço mais um verbo passível de uso nos diários impressos vagarosamente pelas mãos do tempo. Aqui, desconsidere o verbo do ponto de vista semântico. Embora possa adjetivá-lo de predicador, falo da palavra. Li certo dia (não sei onde, muito menos quando), "O abismo é o muro que tenho/ Ser eu não tem um tamanho"... apenas sei que se trata do Pessoa. E comecei a imaginar qual seria o meu tamanho. 1,69m não corresponde à forma sensata de tentar esclarecer essa dúvida. Não há tamanho para se pensar no tamanho. Entende? Eu também não. Mas vejo muros à frente e agora os suponho abismos. E agora sei que tenho um tamanho variável. Ao teu lado vario do imenso ao microscópico.

Ser eu não pressupõe tamanho e isso dificulta visualizar-me pelo espelho. Dificulta encontrar a roupa certa, o livro certo, a palavra, precisamente, a palavra certa. Por isso, talvez, calo. "Você nunca fala, Ana" Sim, eu calo. A palavra presa, o gesto contido, a palavra solta em outros ouvidos, o gesto indevido, num tamanho que desconheço, pois não penso no tamanho que tenho quando não estou contigo.

janeiro 04, 2008

e o céu tingiu-se de azul-turquesa

o amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

alberto caeiro, o amor é uma companhia

janeiro 03, 2008

anicca*

tudo é impermanência!

Ainda não sabia disso, não dessa forma tão intempestiva, quando adotei por alcunha esta singela palavra: Anica, agora retificada a Anicca. É preciso atentar ao que falamos, ao que pensamos, ao que queremos: quase sempre se transforma em fato, ainda que etéreo. E me vejo inconstante, instável.

E quis experimentar um amor eterno. Talvez o problema relacione-se à temporalidade de nós mesmos. Falíveis, dados a flacidez e a cabelos brancos (no meu caso, digo, no caso dos cabelos, quase todos despontaram no ano recém findado). Queiramos ou não, as portas aos poucos se abrem. Prenúncio de passagem. Prenúncio de novo deslocamento. Mas ouvi dizer que a alma é eterna e acreditei no que ouvi. Ouvi dizer que a alma é quem ama, acreditei novamente. Então não é de todo loucura quando, diante de outra alma, que nos trouxe encantamento, fazer a promessa de amor eterno. Muito menos será loucura acreditar que isso é possível. Tudo é impermanência, mas, em essência, continuamos.

E quis experimentar um amor eterno. Talvez o problema relacione-se ao termo "experimentar". Como experimentar algo que, afervoradamente, já se desejava pra sempre, já era concebido e ansiado e sabido como infindável? Anicca me caiu bem. Vestiu minha efemeridade nos dias. Mas ninguém poderá destituir o que em mim é eterno.

Nesse momento, relembro os dias que são para ser relembrados, não os dias, os fatos nos dias. Os não merecedores de memória encaixotei-os num porão inacessível aos pensamentos cotidianos, para que não poluam a imagem mais linda que preservo em cores e gestos e sons. Se o beijo é dado pela alma, sendo a boca mero instrumento, devo ousar garantir que minha alma permanece sendo beijada pela tua, essas nossas partes eternas, onde tudo é impermanência.


* lê-se ánitcha