novembro 23, 2009

aboio

certo dia, olhando o mar alagoano, eu, que me sinto de Pernambuco, descobri, perto de um paraibano, de uma gaúcha e de uma mineira, que o Brasil é só sertão. E é tanto sertão, com tanto sertanejo de alma empoeirada, de pele queimada e face enrugada, com mãos calejadas e de aperto forte, com fartura à mesa, com sorriso largo, com cama quente. E é tanta solidão aboiada, com lágrima de repente, com saudade derramada, com voz suave e pungente. Sertanejo é só, silencioso e quieto; de olhar aguçado e gesto comedido. É inteiro, terminado, forte, bravo, mas que segue à deriva neste mar de sol e gente, comovido, contrito, como escravo, no seu próprio chão escavado. Certo dia, olhando o mar alagoano, falou-se tanto de saudade e de vontade de ser sertão com sotaque de terrinhas escondidas por trás de serras e de estradas.

julho 19, 2009

dentro do teu olho que brilha

eu não prometo uma vida sem tristeza, nem sorrisos incandecentes todos os dias. Eu não prometo saúde sem fim até o último minuto, nem ao menos te livrar das dores. Eu não prometo ausência de lágrimas, nem de dúvidas. Eu não prometo. Apenas te asseguro um amor sincero em quaisquer circunstâncias.
Você aceita?

(...)

De alguma maneira hoje
Quero sempre casar com você...
Para mim este amor é diferente
não é de papel passado
é amor de papel presente


aliança, elisa lucinda

abril 28, 2009

inverno

partiu como se fosse pássaro a fugir da invernada, súbito, em direção ao sol suposto no horizonte ainda escuro. Era uma noite úmida de abril, com o frio causando tremores à carne dura. Deixou migalhas do jantar e um pequeno cobertor de penas, simulando um agasalho. Deixou olhos desbotados, inundando a imensa noite apagada. Deixou deserto e solidão. Deixou uma voz rouca, simulando o silêncio e não olhou para trás vez nenhuma. Seguiu. Sumiu. Partiu desprendido, leve como uma folha de outono, que se joga ao chão, certa da maciez oferecida pelo orvalho.

Veio a manhã e persistiu o som mudo, a voz rouca. Manhã iluminada por um sol tímido, encoberto por nuvens pesadas, que não tardaram a se derramar do alto, criando uma paisagem cinza e comovente. Criou-se um aspecto de desamparo nas coisas, reforçado pelo visão turva do olhar abandonado, na noite do outono, que precedeu o inverno da alma.

abril 09, 2009

direção

há o que sou
E o que sei.
Sou duplo,
Um conheço
Outro, onde?
Dize-me!
Faze-me o dois
que componho

fevereiro 25, 2009

café com açúcar

mas como por magia, nas tuas idas e vindas formou-se um vínculo com a matéria que causa teu movimento. E nos dias que se seguem, cada ida fortalece o regresso pra esse ponto que nos rega e acalma e sentencia o óbvio: tudo é um ir sem fim ao teu encontro.

fevereiro 24, 2009

café sem açúcar

nalgum lugar, onde eu nunca estive, vivem a tua voz e o teu sermão. E mesmo quando mudos, sentenciam meus dias em tua direção. Compreendo teus argumentos, respeito-os, mas confesso, com olhar empoeirado, que me cansa essa espera. A espera de que outros ouvidos rotos compreendam teus desejos e te forneçam as chaves da prisão que construíste ao teu redor.

Nenhum confinamento se faz à revelia da escolha livre. Nem a tuberculose nos tempos de guerra foi mais destrutiva do que o desejo íntimo de permanecer encarcerado pelos hábitos e covardias dos dias. Cada instante é inédito e não precisa de molduras preexistentes; cada instante, no seu tempo, precisa de espaço para se compor ou decompor, de acordo com o que elegemos de importante, de acordo com o que reconhecidamente se quer. E esse querer que se quer é o que impulsiona e impele o livre curso da vontade.

Depois de tuas idas e vindas, pude perceber enfim o que é vontade. Ela se difere de querer. A vontade se faz quando se quer. Fala-se em vontade livre, mas toda vontade é livre, enquanto o querer contenta-se com a clausura. O querer discursa sobre possibilidade, a vontade é que é sempre possível. A vontade não precisa acontecer, à medida que no querer é necessária a escolha. E sempre escolhemos o pragmático, não dá trabalho, já foi posto. A opção pelo excêntrico pode nos sacudir da zona de conforto e mesmo na mais tenra idade, sentimo-nos velhos o bastante para sair da trilha programada. Aí não há querer, há vontade sem impulso maior, há uma vontade maquiada por desculpas fugidias de incapacidade, de falta de recursos, sejam eles reais ou imaginários.

Depois de tuas idas e vindas, sobretudo depois de tuas idas ficaram perguntas que não desejam respostas; ficaram dores que não saram com o repouso; ficaram sonhos que não se desfazem com o despertar; ficaram imagens que não se apagam, nem se ocultam. Depois de tuas idas e vindas, esqueceste de te arrancar de mim.

fevereiro 20, 2009

carnaval

as ruas estão de novo num colorido vibrante. Palhaços, pierrôs, arlequins. Maracatus com seus oxuns, oxalás, reis e rainhas. Passistas, frevos, blocos de rua e de paus e cordas. Tambores e clarins. Beijos, sorrisos, abraços, desejos. Olhares libertos, percorrendo os becos, as saias, os amores. Nenhuma alusão às tarefas dos escritórios, do comércio, da casa. Labuta e dores esquecidas, trancadas no porão da memória. Ou talvez dores esquecidas por não existirem efetivamente, por serem frutos da insaciável fome de querer sempre além.

O carnaval não requer expectativas, não requer sonhos, não requer desejos. Saímos às ruas de corações limpos, de alma aberta, com olhos sorrindo. O que acontecer será festa, será folia. Não há exigência de fantasia, nem tampouco de coreografia. Veste-se e dança-se sem medos de reprovações, de críticas. Aliás, quanto mais fora do padrão, mais dentro da festa você estará.

Os casais se enamoram de novo, renovam as juras de amor, alimentam a alma de paixão, jovens e velhos, brancos e negros, homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, não há distinção, nem preconceitos. Parece que se faz um acordo silencioso de paz e perdão. As brigas são rejeitadas e banidas. Ninguém entende como buscar tormento no meio de tanta alegria. Surge um apaziguador em cada um de nós.

Mas eis que essa chama finda. Nas ruas, o movimento da multidão sem pressa dá lugar ao caos dos motores e da fumaça; nos corações, o festejo e o brilho dão lugar à impaciência, à ansiedade, ao medo; nas casas, os sorrisos são substituídos pelas novelas, pelas reclamações. Guardamos uma alma livre, tornamo-nos prisioneiros da nossa incapacidade de reconhecer que a leveza da folia representa a leveza que existe em cada um de nós. Tornamo-nos prisioneiros de nós mesmos, prisioneiros da incompetência nossa em perceber que a vida não precisa de cenários e fantasia.

Que sejam plenos os quatro dias do ano em que saímos fantasiados de nós mesmos.

janeiro 27, 2009

amor de janeiro

amor é um tema inesgotável, assim como é a possibilidade de vivê-lo. Não há muito de novo e cada rabisco se consolida como um jeito inédito de ver e sentir. Exponho-me às avessas, pra me mostrar direito; pinto-me vermelho, pra sugerir cores fugidias; queimo o tapete, pra sentir o chão em brasa; olho por fora, pra entender o que há por dentro; procuro teu sorriso, pra me encontrar em teus olhos, onde me acho e me perco no mesmo piscar. Esse desvario me conduz e me alegra nas manhãs e nas tardes. Esse enredo de antes e de agora me traduz e me esconde. E sigo assim, como a aurora se querendo dia, como a noite escura se querendo eterna, quando nos avista de mãos e íris coladas.

janeiro 03, 2009

Crônica de Ano Novo

“Aí pessoal, que coisa mais doida,... No ano que está chegando, vamos trabalhar somente 7 meses, dos quais temos que tirar 5 meses para pagar impostos!!! A conclusão é que teremos que sobreviver com 2 meses de salário... Estamos ferrados...!!!!!!!!! O PIB do país vai ser uma míngua!!! Apertem os cintos...”

Recebi esta mensagem de feliz ano novo e achei muito adequada a organização do tempo de trabalho, relacionando ganhos e ônus, mas vale pensar que, neste mesmo ano, teremos os seguintes dias, digamos, meio ociosos:

- 1/1/09 (quinta-feira) - Confraternização Universal
- 24/2/09 (terça-feira) - Carnaval (acrescente-se a sexta pré, a segunda de carnaval e a quarta-feira de cinzas, feriado em quase todo país)
- 10/4/09 (sexta-feira) - Paixão de Cristo
- 21/4/09 (terça-feira) - Tiradentes
- 1/5/09 (sexta-feira) - Dia do Trabalho
- 11/6/09 (quinta-feira) - Corpus Christi
- 7/9/09 (segunda-feira) - Independência do Brasil
- 12/10/09 (segunda-feira) - Nossa Sra Aparecida - Padroeira do Brasil
- 2/11/09 (segunda-feira) - Finados
- 15/11/09 (domingo) - Proclamação da República (não vale)
- 25/12/09 (sexta-feira) - Natal
além disso, somemos 52 fins de semana, quem contam 104 dias.

Vamos fazer um somatório geral: 104 sábados e domingos + 12 feriados + 3 imprensados + 2 dias da sexta pré-carnaval e quarta-feira de cinzas + uns 5 dias de feriados municipais e regionais como São João e Dia da Consciência Negra = 126 dias de descanso. Isso dividido por 30, vai ser igual a 126/30=4,2. Então, por que o espanto em trabalharmos cinco meses para pagarmos impostos, se folgamos 4 meses e quase uma semana neste mesmo ano. Parece até que no calendário estão faltando dias. Claro que essa não é a realidade de todos, há os comerciários e outros tantos trabalhadores, que representam a população escrava do nosso tempo ou, se preferirmos, os servos, os plebeus, dá tudo no mesmo. Obviamente não considero minha posição na classe média, medíocre mesmo, como sendo desprovida de escravismo e servidão, mas tenho lá alguns privilégios (do grego privis: privado; legis: lei – a certeza de que embora a justiça seja para todos, a lei é para alguns), e eu nem quero falar de governo, de funcionalismo público e de atestados médicos. De fato, apertem os cintos e aproveitem a mamata.