janeiro 23, 2007

quando o próprio amor vacila

Eu sei que por trás desse universo de aparências, das diferenças todas, a esperança é preservada. Nas xícaras sujas de ontem, o café de cada manhã é servido. Mas existe uma palavra que eu não suporto ouvir e dela não me conformo. Eu acredito em tudo, mas eu quero você agora. Eu te amo pelas tuas faltas e pelo teu corpo marcado, pelas tuas cicatrizes, pelas tuas loucuras todas, minha vida. Eu amo as tuas mãos, mesmo que por causa delas eu não saiba o que fazer das minhas. Amo o teu jogo triste, as tuas roupas sujas é aqui em casa que eu lavo. Eu amo a tua alegria. Mesmo fora de si, eu te amo pela tua essência, até pelo que você poderia ter sido, se a maré das circunstâncias não tivesse te banhado nas águas do equívoco. Eu te amo nas horas infernais e na vida sem tempo, quando sozinha bordo mais uma toalha de fim de semana. Eu te amo pelas crianças e pelas futuras rugas. Te amo pelas tuas ilusões perdidas e pelos teus sonhos inúteis. Amo o teu sistema de vida e morte. Eu te amo pelo que se repete e que nunca é igual. Eu te amo pelas tuas entradas, saídas e bandeiras. Te amo desde os teus pés até o que te escapa. Eu te amo de alma pra alma e mais que as palavras, ainda que seja através delas que eu me defenda, quando digo que te amo mais que o silêncio dos momentos difíceis, quando o próprio amor vacila.

Autor Desconhecido, por Maria Bethânia no show Maricotinha

janeiro 17, 2007

história medieval

A ociosidade me inquieta!
Olhar fixo num canto, deixo que as palavras últimas ouvidas encontrem um repouso no pensamento. Que em breve não sejam mais que memória antiga.
Incomoda este “ter sempre razão” da criatura humana, mesmo quando parte de quem amamos. Devo acreditar que meu comportamento é similar, em detrimento da eterna vigilância. É um mecanismo quase padrão na relação entre as pessoas. Tanto que quando, em determinado contexto, alguém sugere participação em algum ato, que ouso denominar de culpa (tiremos o peso da igreja católica daqui), é de átimo tachado de coitado, de alguém se fazendo de vítima. Percebe? Se você admitir culpa, você é vítima. Se acusar, é culpado.
Meu amor não é menos intenso por isso. Apenas desejo menor ênfase no auto-elogio. Todos estamos implicados.

janeiro 15, 2007

retrato falante

Não há quem não se espante, quando
mostro o retrato desta sala,
que o dia inteiro está mirando,
e à meia-noite em ponto fala.

Cada um tem sua raridade:
selo, flor, dente de elefante.
Uns têm até felicidade!
Eu tenho o retrato falante.

Minha vida foi sempre cheia
de visitas inesperadas,
a quem eu me conservo alheia,
mas com as horas desperdiçadas.

Chegam, descrevem aventuras,
sonhos, mágoas, absurdas cenas.
Coisas de hoje, antigas, futuras...
(A maioria mente, apenas.)

E eu, fatigada e distraída,
digo sim, digo não - diversas
respostas de gente perdida
no labirinto das conversas.

Ouço, esqueço, livro-me - trato
de recompor o meu deserto.
Mas, à meia-noite, o retrato
tem um discurso pronto e certo.

Vejo então por que estranho mundo
andei, ferida e indiferente,
pois tudo fica no sem-fundo
dos seus olhos de eternamente.

Repete palavras esquivas
sublinha, pergunta, responde,
e apresenta, claras e vivas,
as intenções que o mundo esconde.

Na outra noite me disse:
"A morteleva a gente. Mas os retratos
são de natureza mais forte,
além de serem mais exatos.

Quem tiver tentado destruí-los,
por mais que os reduza a pedaços,
encontra os seus olhos tranqüilos
mesmo rotos, sobre os seus passos.

Depois que estejas morta, um dia,
tu, que és só desprezo e ternura,
saberás que ainda te vigia
meu olhar, nesta sala escura.

Em cada meia-noite em ponto,
direi o que viste e o que ouviste.
Que eu - mais que tu - conheço e aponto
quem e o que te deixou tão triste."

Cecília Meireles