abril 29, 2008



a saudade é presente e viva e tem a cor dos teus olhos. A saudade é hoje, é agora. A saudade é o que sou, pois sou o que sinto, o que não sou é insensível e longe, inexiste! E só me sinto sendo pra ti, só me sinto sendo-te! Que seja breve!


abril 27, 2008

rua do caminho sem fim

outro dia pensei sobre a brevidade das coisas. Pensei nas ruas que percorri com pés pequenos, passo miúdo, em tempos bem anteriores. Pensei em quantas vezes sentei embaixo de árvores sem me dar conta disso, era tão natural, tão sem propósito. Foi nesse cenário que folheei meus primeiros livros de uma coleção de literatura infantil, que uma irmã comprara de um livreiro ambulante. Eu os li e reli tantas vezes, que já não precisava olhar para as páginas. Eram poucos títulos: um falava sobre um indiozinho amazonas, outro sobre a viagem desse indiozinho pelo Brasil e um outro de um pequeno bandeirante... era quase um curso de história do Brasil, vejo assim agora. Depois vieram gibis e outra coleção infantil. Depois Cecília Meireles e Drummond e Augusto dos Anjos e Florbela Espanca e Vinícius de Moraes e José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto e Mário de Andrade e Manuel Bandeira e foram e são tantos... e veio Maiakóvski e Clarice e veio o que sou, o que me tornei, o que me transformo a cada dia, breve, levemente breve, como as coisas.

Os dias eram longos e os anos intermináveis. Não havia tanta pressa. E me pergunto se aquela casa de janelas azuis, que se abriam em varandas, ainda existe, se abriga alguém. Lembro do Leão, fiel cão vigia. Lembro-me onde foi sepultado. Lembro da quantidade admirável de canários amarelinhos que pousavam despreocupados pelas árvores, pelo telhado, na antena, na cerca que me separava do mundo lá fora, esse mundo de agora.

abril 25, 2008

delírios e delícias*


falo muito sobre o amor, falo muito sobre a verdade, sobre o que conheço por verdade, sobre o conhecimento que caracterizo como potencialmente verdadeiro. Tenho conceitos próprios, ora duradouros, ora efêmeros. Falo o que convém, mesmo quando não conveniente e às vezes silencio. E falar sobre essas coisas leva, necessariamente, ao discurso sobre desamor, sobre mentiras e não-verdades, que as suponho, estas últimas, categorias completamente distintas. Por exemplo: tenho relegado, rejeitado o amor erótico, o amor romântico, mas em absoluto, essas opiniões metaforizadas significam que eu não deseje esse amor assim editado. Então supor o amor falível e desejá-lo eterno, não implica aversão ou contradição. Entendo como uma verdade ou não-verdade inconstantes, mas não uma mentira.

Talvez sejam delírios de desamor, não se trata de rancor. Essas coisas andam separadas. Nesse aspecto, concordo com Freud, que afirma ser defesa o sistema delirante. Por isso me sinto mais leve, exceto naqueles momentos em que meu delírio de boa companheira é esmagado na parede, com suposições mesquinhas. E essa característica classificatória, própria do que se diz humano, é em mim muito sintomática. Se classifico e atribuo categorias às coisas é apenas para melhor compreendê-las. Faço uso exagerado da conceituação e categorização de termos, através desse meio sistemático de comunicar idéias e sentimentos, utilizando signos convencionais e que denominamos linguagem. Abuso da linguagem gráfica, mas percebo que desemboco em teorias antigas, de autoria própria, inclusive.

Mas quero me ater às delícias dos dias. Quero falar sobre o doce-azedo do umbu, sobre o frescor da água, em meio à tarde ensolarada; quero falar sobre o combate lingüístico em discursos acadêmicos (que põem em dúvida nossas convicções mais antigas); quero falar sobre a chuva que tem refrescado as madrugadas; quero falar da palavra em voz comovida que me foi lançada outro dia; quero falar de tons claros, como rosa, azul, branco, amarelo; quero falar sobre o amargo atraente da rúcula, que enfeita e impregna de sabor as refeições; quero falar do frio e do doce do sorvete de manga; quero falar sobre o vento que assanha meus cabelos; quero falar das mãos que dão carinho sem esperar retorno; quero falar da música que promove flutuações; quero falar da luz que rompe a noite e da escuridão que adormece o dia; quero falar sobre pombos que fizeram seu ninho em minha janela e me acordam com seus sons gorjeantes; quero falar de borboletas e nuvens; quero falar de outono; quero falar das presenças diárias e gratuitas; quero falar da paciência e ternura dos amigos; quero falar do teu jeito manso e delicado de dizer as coisas, que tem me feito pensar nas paisagens mais lindas, que tem me feito acreditar e querer classificar o amor, o desamor, as verdades e não-verdades dentro de outras categorias, mais leves, mesmo que transitórias.


*
pegando emprestado e adaptando o título de um disco de simone bittencourt de oliveira, da década de oitenta, precisamente, de 1983

abril 24, 2008

achismo

posso falar de dor, de amor, de rancor, de dissabor, de louvor, de calor, de rubor, de sensor, de detector, de tremor de terra e de mãos, mas não posso falar de ti. Como alguém pode inexistir de forma tão categórica na vida de outro?

E o que me importa descrever tantos adjetivos de amor, elaborar tantas definições, se nenhuma delas foram suficientemente graves para que continuasses a me olhar? Na verdade, nada te faria me olhar de novo. A propósito, alguma vez olhaste só para mim, fui teu alvo único ao menos por um pequeno instante? Porque eu sei que não fui o que sendo, disse-te que seria. Não me apresentei em gesto o que em demasia me expus em palavras. Culpo essa introspecção expansiva, própria de quem, em essência, se constitui duplo. Mas sou isso que sangra em verbetes equivocados e inexpressivos, coerentes com a dificuldade de dizer o que grita na mais remota profundidade do que sou. Sou a dor maculada em riso e bons modos. Sou o afeto, revestido em apego. Sou o olho que cega na busca da luz antes nele refletida. Sou o canto de amor que brota da chuva quando pisa no telhado. Sou a carícia da gota, quando resfria a pele que queima pela saudade. Sou quem te ama e assim me reconheço.

Então, silêncio. Acalma esse teu coração impulsivo, esse desejo de dizer coisas que já não interessam à tua platéia, aos teus ouvintes. Aos poucos, o tecido pesado e denso que formava tua cortina, foi sofrendo pela ação do tempo, desgastou-se, rompeu-se e te vimos sem maquiagem, sem fantasia, no camarim, só. Numa mão uma taça de champanhe barato, na outra, restos de ilusões escritos às pressas em guardanapos de bares e botequins, onde transgredias as madrugadas.

Silêncio. Não há nem mesmo lágrima, nem sorriso, nem aplausos. Assume essa face plastificada pela dor e desencanto por não ser, por não ter sido, por não poder mais ser. Faz uma prece. Pede calma, pede paciência, mas não fala. Não diga o que já não convence. Não encena outra vez esse texto retocado, remendado, mas com a mesma intenção desalinhada de dissuadir corações puros, de fisgá-los e prendê-los na tua toca de fera comovida.

Cala-te. Não cogites repetir. Já há tanta insanidade dispersa, não contribuas ainda mais. Faz silêncio, ouve apenas o que não precisa de palavras, ouve o que vem de ti, ouve além do que foi estabelecido como certo, como fim, como norma, como pronto. Ouve além dos teus achismos veementes.

E o que me importa descrever tantos adjetivos de dor?

abril 19, 2008

cuidado de lua (não falo de cuidado possuidor de fases)

a lua me acertou. Branca, cheia, flutuante, inconstante. Lá por cima, através do telhado, através das lacunas das janelas, transpassa seus tons noturnos, transpassa meus sentimentos soturnos. Sinto-me assim, como um náufrago que oscila entre a embarcação e o cais, e emprega as suas últimas energias para derramar um olhar solitário e contemplativo na direção dessa bola celeste e inebriante. Imersa em livros e folhas, sem compreender a fala das letras, nem a voz da tinta, apenas direciono os olhos à janela entreaberta e me permito o arrebatamento. Idealizo esse crime a mim mesma, que consiste em maltratar um coração que se esforça em alcançar a margem segura desse mar sem fim da dúvida e do tormento.

Esquivo-me à ponderação sobre o ato de pensar em ti, num dia com noite de lua cheia. Sei dos riscos e rio deles, já não me causam aquela dor áspera, que se movia com rapidez tal, que em segundos todo corpo se contorcia em agonia súbita. Hoje ela é lenta e suportável e quase feliz, precipita-se em vida. Dor é vida, é sensação que demanda cuidado, proteção. E lembro das pessoas que estão por perto, que não se permitem ficar ao largo, só porque em alguns momentos, nossos discursos são tão os mesmos, são franca ecolalia e, à revelia do inédito, nos ouvem. Isso é cuidado. Por isso a lua não me machuca, apesar de me acertar, ela me ouve, ela sabe, ela me olha e se abre em brilho.

abril 18, 2008

o cego e o amor ou sobre a cegueira de ambos

O amor é cego e ainda assim não consegue ver com clareza as coisas e isso não é um equívoco de fala. Pessoas que apresentam alguma disfunção visual são mais perceptivas e sensíveis, conseguem enxergar com limpidez e profundidade não comuns à maioria das pessoas com olhos sãos. Mas o amor é cego, condicionado, limitado, superficial, desprovido dos atributos comuns à cegueira. Não o amor-amor, mas esse amor que aprendemos a sentir e nomeá-lo de eterno e verdadeiro, ao mesmo tempo em que está preso a amarras mesquinhas, a dogmas superados. Amor de novela: difícil e fatigante por toda a vida, que se decide num final feliz, que só terá dado certo se existir um final feliz. Contraditório! Supor um final não significaria término? Onde fica o eterno? Que verdade está implicada nesse caleidoscópio de conceitos assimétricos, que buscam harmonia? O eterno está fora do tempo, não há princípio ou fim, nem marcação transversal. Talvez o amor seja o princípio, talvez seja o fim (leia-se finalidade), não sendo possível as duas propriedades, são excludentes, por isso vejo maior praticidade em compreendê-lo eterno. Eis que se lança outro impasse. Seres temporais, somos isso. Não visualizo o temporal detendo o eterno.

Mas não se trata de amargo ou peso desabrochados de mim. Hoje o dia está claro e leve e fresco e com cheiro doce de flor de primavera em manhã de domingo, e essas qualidades todas se refletem em cada gota do que sou, ou ainda posso crer que cada luz do dia seja reflexo da beleza que amanheceu em minha alma. Mas falo da alma como coisa originante, como parte de tudo, como primórdio e não como coisa esvoaçante, que pula de corpo em corpo, até um abrigo derradeiro, fora do corpo.

E já não me importa se esta é só mais uma teoria sobre a mutação rítmica do amor em meu pensamento. Ontem eu te amava, hoje sou quase o amor eternizado, hoje sou quase perfeição.

E o dia brilha. Lá fora e aqui dentro, no peito!

abril 13, 2008

pergunta atemporal

Perdi meu prumo
Ontem e hoje são iguais
Rezas e cantos não me acalmam

Qualquer coisa traz tua imagem
Unica e serena
Em partes, em minúcias, sempre inteira

Vivo imaginando teu olhar
Onde ele fita, quem olha?
Cadê aquela luz que me iluminava
Em direção qualquer que marchasse

Nenhuma canção é tão linda
Aguas cantarolantes não são mais belas
Orações e hinos, nada é como tua voz

Voz que me enternecia
Olhos que me acalmavam
Lábios que me envolviam
Tez que me aquecia
Aonde moram
?

os ombros suportam o mundo

chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


(carlos drummond de andrade in sentimento do mundo)

abril 06, 2008

domingo

solidão não é casa vazia, nem telefone mudo, nem silêncio. Solidão é ausência, é a percepção da falta. A solidão segue o padrão "slippery slope", onde um evento piora o outro. Escorregadia, não se prende em um ponto que possibilite ser extirpada. Mutante pela causa, a mesma pelo efeito de dor. Então, eu espero...

Eu espero
Acontecimentos
Só que quando anoitece
É festa no outro apartamento

Todo amor
Vale o quanto brilha
E o meu brilhava
E brilha de jóia e de fantasia

O que é que há com nós dois, amor?
Me responda depois
Me diz por onde você me prende
Por onde foge
E o que pretende de mim

Era fácil
Nem dá pra esquecer
E eu nem sabia
Como era feliz de ter você

Como pode
Queimar nosso filme
Um longe do outro
Morrendo de tédio e de ciúmes...


(marina lima e antônio cícero - acontecimentos)

abril 04, 2008

ela olhava pra mim

ela olhava para mim descontraída, como passarinho em manhã de primavera. Ela me olhava contente, como contente é o canto do pintassilgo no alto da goiabeira, vendo o sol despontar ao longe. Não há nenhum tratado pintassilguês que já tenha demonstrado as razões do cantarolar desse pequeno morador dos céus, quando a primavera acontece em uma flor. Já no meu tratado de pretensões presumíveis, eu buscava descrever os motivos daquele contentamento descontraído, que se jogava em minha direção.

Ela olhava pra mim atentamente, como borboleta amarela ao primeiro sinal de roseira se abrindo em cor. Na ciência borbolética, não se explica, muito menos se deseja explicar essa atenção, ela é atenta e fim. Na minha alucinação concebida, buscava identificar que sinal emitia para captar essa admiração.

Ela olhava pra mim com ternura, como é a chuva que afaga os telhados, na madrugadinha sertaneja. Dentro da sociologia das águas, não há discurso que aponte o motivo dessas carícias em forma de lágrima, na pele ressequida do agreste telhado. Na minha filosofia rupestre, me dediquei a questionar as razões das ondas de carinho terno que me tocavam.

Ela olhava pra mim com desejo, como o cão deseja a volta do seu dono e faz a mesma festa, estando ele ausente há 10 minutos ou há 24 horas. Ela me olhava assim e eu permaneci imóvel, com medo que aquilo me quebrasse, me partisse ao meio. Ela me olhava desse jeitinho: contente, descontraída, atenta, terna, desejosa. E eu a chamei de azul e eu também a olhava, admirava, guardava, protegia e me encantava. Mas num dia desses qualquer (pois não importa saber o dia que ela deixou de me olhar), eu a percebi distraída. Ela ainda me olhava, é certo, mas sem muita convicção, sem muito entusiasmo. Eu que sempre propus definições, achei que fosse resultado do cinza inverneiro (era inverno? Não sei!). Mas persistiu e eu quase não a sentia me olhando. Ela olhava, mas me transpassava, via além. Alguém? Eu não sei, mas sei que ela quis saber o que estava lá, onde se fixava o seu olhar. E olhou e viu algo e não mais voltou a me olhar daquele jeito, que não pude perceber em nenhuma outra que tenha me olhado algum dia.

Às vezes paro diante do espelho para captar a sensação de olhos em minha direção. E lembro que eu quis entender quando sentir era suficiente, mas eu senti e muito e sinto ainda o impacto daquela luz. Às vezes penso que aquele olhar não perdeu nenhum de seus atributos e apenas foi desviado, interrompido. Bloqueio e boicoto essa idéia. Não é possível quase nada se eu supor que em algum momento eu teria de novo ela olhando pra mim. Então eu fecho os olhos e abro a porta e penso que sou livre e vou ver o mar, que não tem a cor dos olhos dela, mas me inunda, me causa qualquer sensação de calma, que se desvela pela água que sai dos olhos e se confunde com a onda verde-azul que fui buscar.