abril 04, 2008

ela olhava pra mim

ela olhava para mim descontraída, como passarinho em manhã de primavera. Ela me olhava contente, como contente é o canto do pintassilgo no alto da goiabeira, vendo o sol despontar ao longe. Não há nenhum tratado pintassilguês que já tenha demonstrado as razões do cantarolar desse pequeno morador dos céus, quando a primavera acontece em uma flor. Já no meu tratado de pretensões presumíveis, eu buscava descrever os motivos daquele contentamento descontraído, que se jogava em minha direção.

Ela olhava pra mim atentamente, como borboleta amarela ao primeiro sinal de roseira se abrindo em cor. Na ciência borbolética, não se explica, muito menos se deseja explicar essa atenção, ela é atenta e fim. Na minha alucinação concebida, buscava identificar que sinal emitia para captar essa admiração.

Ela olhava pra mim com ternura, como é a chuva que afaga os telhados, na madrugadinha sertaneja. Dentro da sociologia das águas, não há discurso que aponte o motivo dessas carícias em forma de lágrima, na pele ressequida do agreste telhado. Na minha filosofia rupestre, me dediquei a questionar as razões das ondas de carinho terno que me tocavam.

Ela olhava pra mim com desejo, como o cão deseja a volta do seu dono e faz a mesma festa, estando ele ausente há 10 minutos ou há 24 horas. Ela me olhava assim e eu permaneci imóvel, com medo que aquilo me quebrasse, me partisse ao meio. Ela me olhava desse jeitinho: contente, descontraída, atenta, terna, desejosa. E eu a chamei de azul e eu também a olhava, admirava, guardava, protegia e me encantava. Mas num dia desses qualquer (pois não importa saber o dia que ela deixou de me olhar), eu a percebi distraída. Ela ainda me olhava, é certo, mas sem muita convicção, sem muito entusiasmo. Eu que sempre propus definições, achei que fosse resultado do cinza inverneiro (era inverno? Não sei!). Mas persistiu e eu quase não a sentia me olhando. Ela olhava, mas me transpassava, via além. Alguém? Eu não sei, mas sei que ela quis saber o que estava lá, onde se fixava o seu olhar. E olhou e viu algo e não mais voltou a me olhar daquele jeito, que não pude perceber em nenhuma outra que tenha me olhado algum dia.

Às vezes paro diante do espelho para captar a sensação de olhos em minha direção. E lembro que eu quis entender quando sentir era suficiente, mas eu senti e muito e sinto ainda o impacto daquela luz. Às vezes penso que aquele olhar não perdeu nenhum de seus atributos e apenas foi desviado, interrompido. Bloqueio e boicoto essa idéia. Não é possível quase nada se eu supor que em algum momento eu teria de novo ela olhando pra mim. Então eu fecho os olhos e abro a porta e penso que sou livre e vou ver o mar, que não tem a cor dos olhos dela, mas me inunda, me causa qualquer sensação de calma, que se desvela pela água que sai dos olhos e se confunde com a onda verde-azul que fui buscar.

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