março 26, 2008

teoria das entrelinhas

carinho de maré é lua cheia e despretensão é sempre um discurso contundente, quando o assunto é o olhar do outro. Soa mais poético, romanesco, há uma certa admiração ingênua. Não há qualquer tipo de prerrogativa, não há qualquer tipo de intervenção, não visível ao menos. Constrói-se no fluir calmo das ondas remadas pelo vento. Começa como tudo que se planeja mitificar para engrandecer: ao acaso, mas considerando um caminho desde sempre posto, esperando o seguir; afinidades antigas, olhares reconhecíveis ao longo das eras, vínculos da idade do calendário. Como em toda boa história de relações amorosas, graceja-se essa casualidade, permeada por uma atemporalidade, que eterniza o momento e admite-a como verdade inquestionável, rejeitando-se a negativa contradita de que se pretendia ser.

E posso olhar nos olhos, posso sugerir qualquer outro roteiro, nenhum será significante, nenhum pousará tão perfeito, quanto o que se põe sem o desejo criador prévio, sem a idéia que principia. Mas pelo menos fica a teoria subentendida, essa coisa de argüir, suspensa em meu comportamento insensato, inoportuno, desmitologizante, quase inquisidor. Contudo não pretendo respostas. Sou também despretensiosa nos meus rodeios, quase imperceptível. E não espero, em absoluto, provocar qualquer efeito, não aspiro ser causa. Mas não posso negar que minha retórica sim é desprovida de qualquer manha astuciosa, reafirmo sua ingenuidade. Ela foi pensada apenas no sentido de suavizar as armadilhas postas, quem dera, pelo destino.

março 21, 2008

a dualidade do que é uno

articular verbos sobre o amor vem do desamor. Essa certeza é posta, porque é preciso pensar sobre o que se escreve e é no desamor, somente nele, que conseguimos o distanciamento necessário para argumentar, desenhar e desdenhar do amor. Quando há amor, sente-se apenas, sem pensares. Suponho ser essa a razão para o que eu escrevo agora: poder pensar sobre o amor, na ausência do cenário amoroso. Quando há amor, não há julgamento. O que poderia ser julgado? Para o amante, o amor é dogmático. Mas não nego o sem-fim de verdades dogmáticas impregnadas na escrita sobre o amor não-amante, que as tenho inclusive. No amor, a maior verdade é que não há fim; no desamor, sabe-se e é certo que tudo acaba. No amor, a liberdade só tem fundamento se houver prisão no peito amado; no desamor, a regra está na destituição das amarras. No amor, quebra-se o paradigma da imperfeição humana, o outro se torna um deus de serenidade, brandura, compreensão, carinho, doação; no desamor, reconhecem-se as caricaturas sobrepostas, as qualidades maquiadas.

Não é possível qualquer debate acerca do amor entre o amante e o não-amante. Há desconexão de discurso, há conflito, resistência, perturbação, adversidade. Por isso sempre rememoro com espanto minhas bases conceituais amorosas, nos distintos períodos em que me ponho como amante ou não-amante, como quem sente ou como quem pensa. Contradizeres se despejam em abundância.

Isso me alegra, contudo. Reafirma a transitoriedade das coisas diante do tempo, esse senhor indefinido e inacabado. A propósito, qual o seu significado? De onde vem, onde deságua? Onde se esconde tamanha engenhosidade mutante que se expressa em mim? Como acelera os dias em que há amor, sem dar a perceber no relógio e como os torna tão morosos, tão hostis em dias como hoje? Diante do tempo, todo amor se torna emblemático. Seja pensado ou sentido, traz em si a angústia de ser e não ser dentro de um mesmo instante; traz a dor da saudade, que se alimenta tão macrobioticamente das horas; explicita o rosto amado-desamado, que se desdobra em riso ou lágrima. Nesse tempo de agora, percorro a tênue faixa que intercala esses dois lados de amor e desamor, carregando todas os dogmas, justificando todas as causas, sentindo todos os efeitos.

março 18, 2008

sobre a palavra

tenho especial atração pela palavra. A palavra cantada, escrita, dita, me causa encantamento. Mas gosto sobretudo do jeito como se diz a palavra. Gosto de ouvir cada letra no seu tempo, com a força que lhe couber no instante da pronúncia. Gosto da palavra que sai da boca após reflexão, como gosto da que escapa sem aviso e nos impregna de léxicos. É vital, no entanto, para os ouvidos o dizer apurado, a modulação do som, que confere cuidados com a palavra, respeito com o que pode constituir um significado, mesmo quando sozinha, operando o seu livre-conceito.

Tenho interesse na beleza que esses sons articulados produzem, quando exprimem idéias. A palavra, quando dita, pode ser uma carícia espalhada pelo vento, que penetrando pelos ouvidos, acaricia todo o corpo. A palavra é dádiva que jamais retorna à fonte originante no mesmo formato. Uma vez pronunciada, não poderá ser capturada, armazenada, escondida, pertencerá a quem ouvi-la. Por isso a importância do bem-dizer, existe apenas uma oportunidade de proferir o som e manifestar uma significação. Mesmo que repetida, jamais expressará o que a pronúncia anterior sugeriu.

A palavra é texto, pretexto e contexto. Acompanha-nos mesmo quando silenciosa, mesmo quando emudecida. A palavra não precisa de alto-falantes, ela pode ser sussurrada e gerar mais deslumbramento que se lançada em tons maiores, mais graves, ostensivos. Na verdade, em mim, gera mais impacto quando assim, murmurada.

Gosto da articulação da boca, do movimento dos lábios, de como os olhos acompanham o dizer, ligados por uma relação de pertinência, como a harmonia de uma orquestra sinfônica. Gosto de como as mãos regem e acompanham e se intercalam entre os sons e os gestos. Encanta-me quando se inverte a fala, enaltecendo a palavra, ainda que para ter um sentido mesmo, mas que vai despertar a atenção pela possibilidade de se produzir o novo, com o que é comum.

Gosto de como se diz. Então, que sejam ditas todas as palavras. Articulem-nas em meus ouvidos. Contem histórias, cuidando de cada uma delas, das palavras, de tal forma que transcendam as noções óbvias, captadas pelo sentido natural da audição e ressoem como cantorias e sejam percebidas pela alma.

março 15, 2008

o amor pelo avesso

existem coisas que não se explicam mais tão facilmente. Preciso formar conceitos que correlacionem o princípio ao que se precipita em fim. Preciso aprender a ver como passado o que me acostumei a ter como presente. Evidentemente, essa não é uma tarefa das mais fáceis. Apegos, carências, hábitos, memórias, enfim, todos os nomes atribuídos ao amor, quando o tempo hábil de sua existência se perdeu em algum lugar-comum das palavras descuidadas pelo cotidiano, precisam ser extirpados. Precisa-se de tempo e disciplina, de vontades e certezas, mas sobretudo de ternura, sutileza, delicadeza, sobrepostos por uma certa ingenuidade, que garantam a veracidade da busca pelo esquecimento, mesmo que contemplativo, uma vez que, embora inadjetivado, esse amor permanece.

março 12, 2008

temática do desespero

em minha vida os acontecimentos parecem, às vezes, trens descarrilhados, desgovernados. Os sonhos são plantados sem planejamento, com cuidado contudo, pensados e organizados numa lógica, que se torna irrelevante no momento mesmo em que eles são gerados.

A imaginação relativiza qualquer medida que pareça afastamento. Sempre foi assim. Conjecturo as mais estranhas formas de justificativas, para manter a chama ardente acesa. Pode ser que não resolva, de certo não resolverá, mas parece bom e traz leveza, mesmo que momentânea. Pareço-me a mesma, mas ao redor tudo tomou nova forma, tudo se pintou ou descoloriu e me perco na tarefa de compreender em que país de Alice às avessas fui remetida. Não adiantam cartões postais, nem poesia em branco e preto, nem mensagem multimídia, nem telefonema à meia-noite, nem email descontraído... perdi os códigos de acesso e suponho que tentar uma segunda vez poderá fazer bloquear o próprio instrumento de remessa: medida preventiva!

Então a insônia tornou-se substrato de amor recôndito. Apenas as olheiras testemunham-no. Talvez o morcego angelista também possa atestar esse sentimento desmedido, explosivo, como trem descompassado e que meu peito teima em dominar, em embalar, para que adormeça, para que caia em sono profundo e se esqueça.

março 10, 2008

se eu soubesse

como poderia expressar o que a boca nega, teima em esconder, em manter silêncio, em exercer comedimento? Cada pensamento e o coração sobressalta-se. Pancadas na porta ou seria o peito desavisado?

Procuro não desalinhar as idéias: 'métrica, rima e nunca dor', mas se eu tivesse conseguido dizer a tempo, se tua paciência não fosse tão objetiva, se eu não me perdesse com as palavras, se o meu gesto fosse mais livre? Se eu não caminhasse pelo caminho mais longo, se não fosse certo que creio no que acredito, se eu não fosse maio e você, verão...

E entendo que ser vítima de mim mesma, torna-me mais cruel que ser tirana de um país. Ocultei a lógica e me dediquei à magia, pus-me a mitificar, a atribuir justificativas, quando tudo era óbvio, real e posto, tudo dado em sorriso de olhos e boca. Tudo aqui, ao lado e eu feito louca, enxergando outra dimensão de pecados e medos. Como pude não saber, como pude não dizer, como pude acreditar que não era preciso? Por que fiz tão difícil o ir, por que me preocupar em como chegar, se deveria apenas desenhar a estrada, o ir-me a ti?

E lembro a doçura do teu corpo, a leveza da tua voz, a meiguice das tuas palavras, a cumplicidade do teu olhar. Naufrago em lembranças de uma história que não aconteceu, que adormeceu em rascunho, que se perdeu por inabilidade em saber-me te amando, em saber-te a me amar.

escrito após ser impactada pela bela canção if you knew, por nina simone

março 06, 2008

dias sim, outros também

ainda bem que a minha consciência me permite distanciamento, abstração, heterogeneidade. Não sou a única pessoa do mundo, mas sou a única a ser eu mesma. Sou o que se pode chamar de inédito e ainda assim ser possível ser novo de novo todos os dias, como o sol que toda manhã surge o mesmo, mas sem impressão similar antes. Ainda que o figurino se mantenha, ainda que o pensamento ordinário se eternize, se solidifique, todo o resto é névoa mutante. Mesmo que me enraíze e creia-me imparcial ao tempo, há de chegar o momento em que, com espanto, será dito, talvez com descompassada ironia: tudo está diferente, sendo o mesmo. E é essa conjunção de dois lados ímpares que me permite de dentro ver todo o mundo de fora, ao mesmo tempo em que o mundo de fora, mesmo sem me enxergar por dentro, promove as mudanças que levarão meus olhos a ver tudo com novas cores.

O presente é um suspiro apressado entre dois momentos inatingíveis, quiçá inexistentes. Por isso o doce e amargo da compreensão do que é, a droga que cura e envenena: É! e neste exato momento em que termino estas palavras, foi! Ainda bem que tenho memória consciente que me permite esquecer o que foi e não devia, projetar o que não será e eu queria.

março 03, 2008

tratados e armadilhas

zumbido de abelhas estraçalhando o silêncio flutuante do passado. 'Vamos, acorde! O padre já vai celebrar a missa...' 'Que missa? Hoje nem é domingo!' Conto de fadas nordestino: a mocinha em seu vestido rosa-flor, com perfume de laranjeira e duas tranças no cabelo, presas por fitas brancas de cetim. Na memória, encontro marcado: missa matinal, na capela da cidade. As palavras do sacerdote terão conotações várias, e ela se colocará na posição de obediência aos ritos, de risos sobre os ritos, até o momento em que haverá ausência absoluta da percepção da voz do vigário.

O amor é igual em qualquer contexto. Na balada da cidade grande; no bailinho da cidadela esquecida entre os montes; nos bares, que acolhem segredos de fins de tarde; nas calçadas das cidades históricas; nos shoppings climatizados e hostis; nos consultórios de psicoterapia; nas salas de aulas infindáveis; nos leitos hospitalares; no silêncio dos museus; nas salas de projeção; nos quartos de penumbras e sussurros. Desmerece traduções, desconsidera interpretações. Diga-se amor e eis que se formulam tratados. Iguais em essência, repetitivos e trágicos.

Esse amor passa zombeteiro por mim. Acena-me ao longe. Acho que por descrevê-lo, se pôs arrogante e auto-suficiente, magoou-se, revolveu-se em sua vida sumária e efêmera, eterna apenas por ocupar almas que se sucedem e se continuam, num ciclo sem fim. Esse amor me golpeia. Não sei vivê-lo. Quando entendo ser um bom momento, ele se despede e busca outro aconchego. Esse amor é igual em qualquer contexto, mas passível de adestramento. Se reconhecido pelos que o acolhem, disse-me deixar de bancar o filho pródigo.

Mas esse zumbido me desperta, ao mesmo tempo em que faz adormecer a mocinha em seu vestido rodado, cor rosa-flor. Ela vive em plenitude. Ela ama, eu verbalizo.

março 02, 2008

filosofia do amor em mim

diga-se que passei horas pensando numa mesma coisa, por todos os ângulos, por todos os lados, por dentro. Depois tranquei as imagens num cofre onde não se pode achar. Agora sou esse vazio inacabado pelo próximo enredo, que ainda não veio.

E você me diz que não é insistência, mesmo vindo de sua retórica meus piores hábitos. E você me atira,
despretensiosamente, proposições que desencaixotam as imagens lacradas, as perguntas sacralizadas pelo voto de silêncio, removem-se e tentam escapar pela boca. E entendo a irônica pergunta feita a Tales, quando este despencou em um buraco, por olhar para o alto, para o céu. Nunca é possível olhar tudo, ao mesmo tempo, mas escolhemos o alvo, escolhemos o jeito. Admiramos, contemplamos e nos permitimos afetar. Direcionamos os sentidos para aquilo que tentamos entender, para aquilo que desperta o desejo de ver de perto. Às vezes com espanto, outras com temor, umas com alegria, outras vezes com cuidado, em tantas com frouxo descuido... independente da aflição que me preenchia, era você o céu. E agora não sei como me resgatar deste abismo que, descuidadosamente, me fiz submergir.