agosto 22, 2008

conduta

para chegar à cura, intercepte-se a dor, a febre. Vivencie-se a penumbra do quarto e o calor da coberta exigidos pelo corpo, quando não mais se comporta nele mesmo. Para alcançar a cura, suporte-se a insipidez da comida e o amargo da água e que não se esqueça de negociar a ausência nos ambientes de labor. Para buscar a cura, investigue-se os meios e que sejam aceitos, sem contestações, as ervas e venenos; engula-se, sem náuseas, o fármaco que onera o estômago, o fígado e a carteira. Para entender a cura, perceba-se a harmonia prévia à dor que se instalou sem avisos e que não deixará reminiscências. Para querer a cura, reconheça-se a doença sem maquiagem: identifique-a; se há de fato o mal, perceba-o desnecessário, inoportuno. Para querer a cura, desapaixone-se pela penúria.

agosto 13, 2008

"solidão a dois"

e aquela música veio como uma profecia. Profecia no sentido estrito do termo e não como predição de cenário futuro. Profecia no sentido de verdade, essência primeira e última de todas as coisas. E eu lembrei dos teus olhos... e do teu sorriso, que é tão leve e livre. Lembrei da cama e dos lençóis pelo avesso e lembrei do beijo, aquele que sei que nos sabemos. Fez calor e, agora, frio.

agosto 12, 2008

ímpares


por onde começar? Será que existe um ponto de partida? Procuro o esconderijo, a fortaleza, mas parece que tudo está posto, tudo está dado e assim qualquer esforço pode se mostrar inútil.

Um minuto anterior é passado remoto, mesmo se remonto passo a passo parece distante, pois ainda que próximo, condiciona-se inacessível, intocável, imutável. Queria em mim essas características de passado, queria essas atribuições do que foi e não mais será, mas parece que me repito. Replicação exata!

Palavras são aves migratórias e mutantes, ainda que se expressem sob o mesmo fonema. E o amor se transmuta em cada proferir. E a dor se consolida em cada silêncio. Mas não falta nada. Tudo está posto e dado. Só eu que implico na relutância.

agosto 05, 2008

dois lados, um lado


o silêncio é natural aos ouvidos, assim como o som. A escuridão é tão necessária aos olhos quanto a luz. A lágrima e o sorriso se interceptam sem agressões ou constrangimentos, exprimem-se na hora mesma em que a alma reveste-se de dor ou alegria. A desarmonia acontece quando há inversão nos lugares das coisas, quando na hora do silêncio o som insiste em pronunciar-se, quando no momento breu, a luz risca o espaço, quando o sorriso disfarça o que por dentro é só agonia.

Não há ostentação no lírio, seja por sua beleza ou pela sua simplicidade majestosa. Ostenta-se pelo critério humano que lhe atribui o belo, o simples, o imperial. O lírio só se sabe lírio e no sereno ou tempestade mostra-se invariavelmente lírio, não se imagina ou sequer pretende-se rosa ou abacateiro, por isso sua lindeza poética. A beleza de cada coisa vem do que a coisa é. O artifício corrompe, desalinha, denigre o que é completo, o que já veio pronto.

Percebo a cadência do tempo em cada batida do coração, que continua sem se repetir e, feliz, reconheço a engenhosidade que garante com que tudo passe e permaneça. E nesse movimento novo e reiterado aprendo a ver-me por dentro e também por fora, sem esforço, sem intervenção, sem querer encontrar o que não há, admitindo como verdadeiro cada traço, legitimando sem contestação. Não há encanto ou desencanto. Nenhum atributo condiz com a apreciação pura. Nenhum julgamento cabe, basta o reconhecimento de que há faces distintas em um mesmo fenômeno. E vejo que o belo contempla e completa o feio. Pois o que são a beleza e a feiúra, senão momentos reconsiderados de um mesmo olhar, senão molduras díspares de um mesmo pensamento?

Aos poucos, lá fora, o dia engole o pretume de uma noite sem lua e de poucas estrelas. Aqui, aos poucos, a quietude das horas devora o mistério da dor, nessa regência de dois lados, na unicidade dos lados.