agosto 05, 2008

dois lados, um lado


o silêncio é natural aos ouvidos, assim como o som. A escuridão é tão necessária aos olhos quanto a luz. A lágrima e o sorriso se interceptam sem agressões ou constrangimentos, exprimem-se na hora mesma em que a alma reveste-se de dor ou alegria. A desarmonia acontece quando há inversão nos lugares das coisas, quando na hora do silêncio o som insiste em pronunciar-se, quando no momento breu, a luz risca o espaço, quando o sorriso disfarça o que por dentro é só agonia.

Não há ostentação no lírio, seja por sua beleza ou pela sua simplicidade majestosa. Ostenta-se pelo critério humano que lhe atribui o belo, o simples, o imperial. O lírio só se sabe lírio e no sereno ou tempestade mostra-se invariavelmente lírio, não se imagina ou sequer pretende-se rosa ou abacateiro, por isso sua lindeza poética. A beleza de cada coisa vem do que a coisa é. O artifício corrompe, desalinha, denigre o que é completo, o que já veio pronto.

Percebo a cadência do tempo em cada batida do coração, que continua sem se repetir e, feliz, reconheço a engenhosidade que garante com que tudo passe e permaneça. E nesse movimento novo e reiterado aprendo a ver-me por dentro e também por fora, sem esforço, sem intervenção, sem querer encontrar o que não há, admitindo como verdadeiro cada traço, legitimando sem contestação. Não há encanto ou desencanto. Nenhum atributo condiz com a apreciação pura. Nenhum julgamento cabe, basta o reconhecimento de que há faces distintas em um mesmo fenômeno. E vejo que o belo contempla e completa o feio. Pois o que são a beleza e a feiúra, senão momentos reconsiderados de um mesmo olhar, senão molduras díspares de um mesmo pensamento?

Aos poucos, lá fora, o dia engole o pretume de uma noite sem lua e de poucas estrelas. Aqui, aos poucos, a quietude das horas devora o mistério da dor, nessa regência de dois lados, na unicidade dos lados.

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