fevereiro 25, 2008

outros verbos

a realidade é um fenômeno delirante. Não é possível falar em presença de verdades, tampouco na falta delas. Olho em volta com certo temor, retirando o mofo impregnado pelo tempo. Olho como quem busca a essência das coisas, que, em algum lugar, se aloja sutil e concretamente. Olho com curiosidade e descaso, com coragem e receio. Afinal, essa realidade pura pode me saltar à frente, sem aviso prévio. Mas penso que essa é a única forma possível de percebê-la: sem anúncios.

A minha realidade é múltipla e mutável. Depende do horário do dia, da variação hormonal, da fase da lua, da altura da maré. Depende da paisagem que pinto, depende da mistura que faço das tintas que brotam de mim. Por vezes estática, por vezes tão veloz... por vezes busco descrevê-la, mas como nunca se escreve tal qual se fala, acredito que por no papel é só uma forma ingênua de distanciar a verdade que me corrói a alma.

fevereiro 21, 2008

de frente para o abismo

pura ironia do tempo. O riso, hábito em disciplina, parece querer sair da boca e se esconder em algum artigo de madeira pesada. Eu já vi coisa parecida, coisa como girassol em dia de chuva: atípico e retraído.

Flor de lis, flor de lótus, flor do desejo. Mesmo esse desejo adormecido ainda se move e se apresenta como fruto da tua habilidade em fixar moradia nos corações. Desejo inquieto e intranqüilo, de onde surge a dor que me mantém desperta e que me leva a atravessar as noites me esquivando da lua, do céu, de qualquer estrela.

Leio a bula dos bons pensamentos, do correto comportamento e me vejo imersa na abundância dos efeitos colaterais. Explico-me! Um bom pensamento seria precursor de sorrisos e disposição, mas teimo em pensar em ti, que significa bom pensamento, mas que deságua em saudade, ausência, tédio, lágrima. Mas mantenho aberta a página em que teu rosto me olha e me devora. Descuido e cuidados de mãos dadas, em minha direção.

fevereiro 19, 2008

olhos e lua

as noites enluaradas são particularmente assombradas. Assombro-me com o ângulo em que se põe meu olhar, com minhas palavras. Divagações retorcidas em memória. Dispersão! Mas a lucidez me acompanha. Desconsidero as várias percepções que atribuo ao mesmo fato nos diferentes dias. Permaneço lúcida e é impossível não rir de mim mesma. Lucidez condicionada, mas com vista clara. Lucidez diverge aqui de sanidade. Preencho as qualidades necessárias para o sano, mas prefiro reconhecer a lucidez sem adjetivos, ou apenas reconhecê-la como transparência, como o céu que, de tão limpo, ficou transparente e trouxe a lua outra vez.

Como devo supor os eventos que atravesso? Cíclicos, lineares, disformes, proeminentes... finitos ou sem fim? As relações que se montam nesse atravessar não se alteram em essência. Todas geram estímulos mútuos, contrários e excludentes. Nenhuma relação se faz sem esse nome: conflito. A diferença está na dimensão em que o conflito ocorre e na proporção que lhe atribuímos. Interesses podem caminhar aos pares e ainda assim serem divergentes.

Eu te amo e você me ama. Onde está o conflito? É gerado na diferença que há (1) na forma como queres que eu te ame e como por fim te amo; (2) na forma como queres meu beijo e como de fato te beijo; (3) na hora em que queres meu riso e apenas te olho; (4) no dia em que queres silêncio e eu sou um amontoado de palavras; (5) quando queres cumplicidade e eu busco os amigos; (6) quando queres ler um livro e eu quero ler teu corpo; (7) no momento em que precisas de compreensão e eu preparo o jantar... (n) na hora do fim quando se confunde tédio com falta de amor.

Então entendo que quando amo, sou ainda mais dada aos conflitos. Guerras de amor, presentes e desnecessárias. Esqueço a perspectiva alheia e fixo o olhar na perspectiva que me convém. Esta é uma forma sutil de orgulho. Tudo bem, todo orgulho é resultado de burrice, estupidez, ignorância. Resta a certeza frágil de uma lucidez sã e compassiva, que traga menos assombro diante da beleza singela da lua e dos teus olhos.

fevereiro 14, 2008

valentine's day

livreiros de plantão fornecem alimento e tormento para alma, negam a segunda função, mas é esta a mais fiel à profissão: atormentar espíritos. Incautos, desviam o olhar da ferida que infectam. Mas como seria a vida sem as letras? Como seriam os dias? No meu condicionamento verbalizado e letrado não me imagino distante de traças e mofo. Mesmo compreendendo que minhas páginas amarelas são vastas saladas e churrascos para elas, as traças.

Então traço um plano: fazer uma fogueira com essa substância inflamável, celulose em formato de folhas escrevíveis. Derreto o que alucina e jogo a traça cremada sobre folhas em branco. Alimento e poesia.

Trágico, mas convicto. Tudo bem, convicção subjetiva. O livro era só um livro, a traça não me corroia, nem tinha as mesmas convicções que eu, mas fazia parte do contexto.

fevereiro 12, 2008

a dama 'del Toboso'

o dia floresce a cada novo momento. Ando sem pressa, sem relógio, motivo de insônia. Esqueço o tempo, compassado em seus ponteiros, mundano e inacabado, e me vejo atemporal. Esqueço a ironia e desprezo que se derramam pelas calçadas e atropelam os transeuntes que seguem displicentes. Vou-me embora no passo que cabe entre o meu espaço e o calcanhar seguinte, minimizando os danos, escorregando entre o gesto que entra e sai e desiste de ir ao destino, como a voz, que congela antes dos lábios e se dilui em pensamento mudo.

A presença que busco é esta: eu aqui, neste momento. Esqueço presenças passadas: pretérito perfeito! Exercício cotidiano, praticado até que chegue o cansaço, que o sono apareça, sem peso ou presságios. Apenas fechar os olhos e permitir que a noite siga seu curso e se dissolva ao sol de um outro dia, novo e grave.

Sem ponteiros, mas eis que surgem novos chicotes, ou seriam quixotes (?) sem dulcinéias, sem sanchos, sem ideais, mas com uma certa insanidade poética que desperta o olhar para o meio interno, onde se desenham as emoções, onde se desenrolam os desejos. E se lança uma realidade planejada em tempo algum, podendo, em razão disto, tornar-se imparcial e objetiva, provocando a necessidade de uma nova dama del Toboso ou um novo fiel escudeiro.

Por onde entra e sai o que sou? Em que espaço surge a definição e determinação do que compreendo como eu? Cavaleiro pensante sem respostas ou com respostas errantes. Não adianta fugir dos ponteiros, eles continuarão em espera caminhada, sendo ou não no mesmo ritmo da que executo. Atemporal no percurso. Acrônica no espaço. Pontual nos sentidos: que horas são?

fevereiro 06, 2008

eu e a esperança de óculos

sou um pedaço de vida que se move frágil e lentamente. Em dias de verão, derreto. Partes se desprendem e me abandonam. No inverno, sinto falta de braços que amei, de abraços que amo. Parece pragmático e essa é uma boa palavra neste momento. Braços pragmáticos! Não há nada de romântico nisso. Apenas enfatizo que braços são para abraço e que invernos os tornam imprescindíveis.

Mas nem é inverno e mesmo que fosse, nesta cidade, o que diferencia o inverno do verão está no comprimento da manga da blusa do trabalho e no cobertor que amanhece desarrumado ao lado, ao invés de atingido pela indiferença que o calor desperta, em detrimento a ventiladores e condicionadores de ar.

A madrugada consome meus nervos e hábitos. 1h: desligo a luminária e fecho o livro; 1h15min: acendo a luz e abro o livro; 1h38min, fecho o livro e espero o sono não chegar para reabri-lo às 2h. Dez minutos mais tarde levanto, geladeira: água; banheiro: espelho. 2h20: fecho o livro e desligo a luz; 3h: acendo os olhos, ligo o livro, abro a luz; 3h27min: apago o livro, fecho a luz e desligo os olhos. A noite dorme junto comigo! Necessariamente nessa ordem.

Sou um pedaço de vida que se move ágil e ferozmente. Em dias como hoje, esqueço a hora e finjo que estou na minha casa, no campo, com carneiros e cabras pastando e sigo plantando meus aboios urbanos e pingando colírio na esperança.

fevereiro 05, 2008

em meu lugar

tudo no mesmo lugar e tudo fora. A casa, a rua, a paisagem: visão cotidiana e cheia de novos encantos. 'Vejam essa maravilha de cenário' e eu entendo que é carnaval outra vez. Outra vez esse dia que desabrocha e traz festejos e eu aqui, no meu canto, nesse canto. Pensamento em tempos idos. Memória vasta e pontual. Estou em plena saúde física e mental, e como na maioria das vezes não sei do que se trata a alma, não sei dizer como ela está. Pessoalidade é a característica de qualquer sentimento e, por vezes, acredito que a alma é sentimento. Não sentido, sentimento! Mas sentir é uma coisa difícil, não aquele sentir dos sentidos, ou de propriocepção. Sentir aqui, dentro, dessa forma que não há palavra que descreva. E eu disse que estava em perfeita saúde física e mental, mas às vezes me pego chorando. Trata-se de uma dor que eu não sinto, na verdade é uma dor que eu ‘sentimento’: pessoal, intransponível, coisa da alma.

Esqueço a palavra dos dias. Aponto o olhar nas várias direções, para que eu possa reconhecê-las como possibilidades, mas, claro, não simultâneas, não quero dispersão, quero multiplicidade. E nos tornamos um pouco o outro, quando nos deixa atravessar a pele e beber da sua essência. Se amar é sentimento, e não sentido e bebemos em uma fonte aberta no outro, oferecida por inteiro, resta a embriaguez, o delírio provocado pela necessidade, pelo vício que brota, pela dependência que causa. Assim, posso imaginar que essa dor-sentimento é ressaca. Então, saúde física e mental, alma de ressaca*.


* substantivo feminino
forte movimento das ondas sobre si mesmas, resultante de mar muito agitado, quando se chocam contra obstáculos no litoral; inconstância, volubilidade;
mal-estar in Houaiss: Dicionário da Língua Portuguesa, Objetiva LTDA: Rio de Janeiro.